Como principal estrela de um enorme reality show, o astro é peça fundamental de trabalho intrigante e prazeroso dirigido por Peter Weir e roteirizado por Andrew Niccol.
A filmografia de Jim Carrey trazia, em sua maioria, comédias escrachadas, que se tornaram referência do gênero, como “Debi & Lóide” (1994), “Ace Ventura – Um Detetive Diferente” (1994) e “O Mentiroso” (1997). Mas o diretor Peter Weir viu em Carrey alguém bem mais do que um bom comediante cheio de caras e bocas, decidindo conceder-lhe o papel mais importante da carreira dele até ali. Sem dúvidas, tratava-se de um risco, que poderia destruir um projeto audacioso. Não foi o que aconteceu, felizmente. Carrey aceitou o desafio e, em um de seus primeiros trabalhos dramáticos, fez de “O Show de Truman” um grande filme, também graças a uma direção e um roteiro que transformam filosofia em entretenimento cheio de reflexões e emoções.
Bebendo da fonte de Platão, mais especificamente da obra “Mito da Caverna” (que também serviu de inspiração para “Matrix”, longa bem mais pop do que este), o roteirista Andrew Niccol constrói um mundo particular para Truman Burbank (Carrey), um simples corretor de seguros casado e relativamente bem sucedido, habitante de uma cidade “perfeita”, sem violência ou desigualdades. Mas tudo é falso. Truman é, na verdade, a estrela de um gigantesco reality show que não pediu autorização para exibir para o mundo a vida de seu personagem principal.
Durante 24 horas por dia, os telespectadores acompanham do acordar ao cochilar do agora homem. Desde antes de seu nascimento, câmeras o vigiam, exibindo o seu crescimento, passando pelo primeiro beijo, pela sua formatura e, claro, pelo casamento. Na cidade fictícia, ele relaciona-se com atores, que vão desde a esposa ao vendedor de revistas, é convencido a não deixar o território e sente saudades do pai falecido, quando tudo não passa de uma estratégia de audiência. Mas o segredo está prestes a ser descoberto. A queda de um mero refletor inicia uma série de acontecimentos que poderão dar fim ao show e permitir a liberdade de Truman.
Mas exatamente que liberdade seria essa? Usando a vida de seu protagonista maior como alegoria, Andrew Niccol e Peter Weir mostram que o mundo além dali não é tão diferente. O número de câmeras pode não ser o mesmo, nem o destino pode ser traçado com tanta especificidade. No entanto, as manipulações e o jogo de aparências em nada diferem. Na verdade, toda aquela monumental estrutura serve como proteção para Truman. Ele é bem mais do que uma fonte de dinheiro. É quase como um filho para o criador do programa, Christof (Ed Harris). Logo, o magnífico desfecho de “O Show de Truman” assume um significado ambíguo. (não leia a partir do próximo parágrafo caso não tenha assistido ao filme).
Vê-lo se desvencilhar pode até ser celebrado como um fim de uma enorme intrusão que jamais respeitou seus sentimentos (nem seus pais são verdadeiros). Mas a sua saída pela porta de fundos é também o início de uma batalha que pode causar mais saudades do que ele esperava. As decepções podem superar as alegrias. Estaria ele realmente pronto para partir? Com um ponto final que não é definitivo, o filme é daqueles que dá ao espectador a chance de (a partir de suas experiências e vivências) determinar quais serão os próximos passos do personagem. A partir daqui a privacidade reina absoluta.
O melhor de tudo é que o longa provoca reflexões sem exibir um drama denso. Trata-se de uma produção até certo ponto descontraída, dona de um tom invejável, que leva do envolvimento emocional à risada em questão de segundos. Definir Truman como uma pessoa bem humorada, que dá bom dia, boa tarde e boa noite ainda na manhã, é um grande acerto do roteiro, que também é capaz de dar-lhe camadas de complexidade. É um homem apaixonado por uma mulher que viu apenas poucas vezes. Mesmo assim, é casado com outra. Sente profundamente a morte do pai, que ocasionou um incontrolável medo de água. É, enfim, alguém extremamente comum, de fácil identificação e boa índole.
A interpretação de Jim Carrey traz ainda uma dose extra de carisma. Pode-se dizer que o ator conteve-se e controlou os exageros, mas permanece um pouco da imaturidade e inocência dos papéis anteriores, o que aumentam os méritos da performance. Carrey é um simpático e trágico fantoche de Peter Weir e Christof, que nos melhores momentos do filme se confundem. E felizmente eles são muitos. Com câmeras instaladas nos mais inimagináveis lugares, os diretores proporcionam uma transmissão invejável de um reality show. Alguns planos se repetem propositalmente, com intuito de causar familiaridade com a rotina de Truman ou mesmo fazer publicidade para algum patrocinador.
Já outros nascem do inusitado ou do inédito meticulosamente planejado, tendo como principal exemplo o lindo encontro de Truman com o pai. A melhor sequência do filme é o ponto alto da emoção, assim como da utilização da metalinguagem, assunto que o roteirista por vezes decide abordar. Mesmo revelando todos os requisitos técnicos utilizados para manipular a reação do telespectador (do aumento da intensidade da trilha sonora ao momento exato para dar o close), Weir também atinge o público além da ficção. É a certificação de que um bom diretor é alma de uma produção audiovisual.
Para ele, foi mais uma exemplar prova de sua competência, depois de realizar excelentes obras como “Gallipoli” (1981), “A Testemunha” (1985) e “Sociedade dos Poetas Mortos” (1989). Para Jim Carrey, foi o começo de uma busca por respeito de sua categoria, a qual dura até hoje. Desde então, porém, “O Show de Truman” e “Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças” permanecem como os únicos reais acertos de Carrey verdadeiramente como ator. E, apesar de serem dois belos acertos, não compensam as inúmeras besteiras que vieram antes e depois.