Harry Potter e as Relíquias da Morte. E o terror, a guerra, a solidão, o conflito, a depressão e a amizade.
Essa primeira parte do sétimo volume da saga “Harry Potter” é de longe o filme mais deslocado do contexto fílmico apresentado na história prévia da série. Por vezes eu me perguntava se aquele filme na tela era realmente de Harry Potter, e ao ver os personagens eu me via obrigado a concordar.
Lembro-me de como eu tentei compreender o porquê de Christopher Nolan ter retirado o nome “Batman” do longa “The Dark Knight”. Posteriormente entendi que aquele filme fugia do formato apresentado anteriormente pelos filmes focados no super-herói. Até mesmo “Batman Begins” destoa do seu sucessor, mas gosto de compreendê-lo como uma construção de um universo que viria a ser devidamente explorado.
E é mais ou menos essa a impressão que tive ao ver esse “Harry Potter e as Relíquias da Morte”. Desde que David Yates assumiu a segunda quadrilogia da série, ele foi impondo sua estrutura narrativa e sua identidade estética, e se desvencilhando em diversos aspectos que circundavam a franquia até então. Mas o mais importante: Foi construindo um mundo muito mais sombrio, denso e claustrofóbico, que ambiciosamente visava culminar em um final épico.
Acredito que essa seja a proposta de Yates justamente pelo seguinte: Os quatro primeiros filmes de Harry foram “redondos”. Quando falo isso, pretendo argumentar que esses tinham histórias com começo, meio e fim, que basicamente eram independente umas das outras, e portanto funcionariam como partes únicas que ganhariam maior significado quando juntas. É talvez justamente por isso que “O Prisioneiro de Azkaban” seja o melhor filme da quadrilogia passada, pois tinha a melhor história “independente” e o diretor mais corajoso.
“A Ordem da Fênix” ainda seguiu um pouco desse formato, mas já foi introduzindo os parâmetros do diretor. Já em “O Enigma do Príncipe”, ele apostou nessa grande empreitada de transformar a saga em uma história “contínua”. Resultado: Muitos reclamaram do longa, afirmando que ele funcionava como um grande anticlímax. Portanto vou advertindo: “As Relíquias da Morte Parte I” segue essa mesma linha de construção de cenário e temos uma história com muito mais acontecimentos, o que contenta àqueles que esperam mais ação – e não digo somente no sentido literal da palavra.
Nesse volume temos a continuação da subtrama das Horcruxes, objetos que garantem a imortalidade de Lord Voldemort. Agora em uma jornada solitária, Harry (Daniel Radcliffe), Rony (Rupert Grint), e Hermione (Emma Wattson) precisam procurar as Horcruxes restantes e destruí-las. Nesse contexto, o mundo dos bruxos passa por uma imensa crise e fica cada vez mais difícil de confiar nas pessoas, onde essas acabam por sucumbir à pressão do desespero. Ainda temos a revelação das relíquias da morte, artefatos que podem garantir poder superior a quem possuí-las.
A divisão do sétimo livro em dois filmes pode parecer uma decisão estritamente mercadológica, mas acaba por se justificar à medida que o roteiro trabalha tão bem as questões do livro. E não falo isso só como alguém que leu a obra homônima de J.K.Rowling, mas é visível como temos nesse filme algumas subtramas e discussões que não seriam possíveis se estivéssemos tratando apenas de um filme.
O roteirista Steve Kloves teve tempo suficiente para construir não só a história, mas também dá uma deixa para que David Yates possa aprofundar o psicológico de seus personagens. Mas o mais interessante do roteiro desse filme – e isso se dá principalmente devido à criação de Rowling – é como nós somos apresentados a tantos pontos já trabalhados nos outros volumes da história e de como eles assumem outro valor. É aquela sensação de que a história está caminhando para o seu desfecho, onde nós revisitamos tantos referenciais – outrora tão importantes para aquela eminente trama -, e vemos estes sendo modificados e/ou destruídos, demonstrando que o foco da trama independe deles.
O diretor David Yates se mostra aqui muito competente, mas principalmente corajoso. O que ele fez é algo digno de elogios. Mas também eu considero que o “erro” do filme também se deve a ele. As cenas de ação são as melhores da série. A maneira interativa como ele utiliza a câmera, seguido de opções de montagem e edição de com e imagem – o que também vale um elogio à parte técnica – trazem grande veracidade às cenas. E como adendo temos sequências excelentes filmadas na noite Londrina, incluindo o embasbacante ataque ao café, que mescla as noções de magia e realidade que a série veio trabalhando.
Mas então Yates trabalha em um ritmo constante no primeiro terço do filme e no restante ele opta por um tom completamente diferente. E daí vem o tombo. O resto do filme destoa bastante dessa primeira metade e acaba por soar estranho. Mas a questão é que essa parte destoante é simplesmente genial. São várias tomadas belíssimas explorando diversas locações e um silêncio deveras incômodo. É aí que Yates mostra um Harry Potter completamente diferente, em um clima depressivo e introspectivo que pode incomodar o público mais acostumado ao cinema cool de blockbuster. Ele leva seus personagens ao extremo, provocando embates e tensão, em uma atmosfera marcada por apreensão e medo. Destaque para a sequência – que eu considero a melhor de toda a franquia -, da dança de Harry e Hermione, que tem um significado verdadeiramente maduro e belo.
Entrando no aspecto de atuação, esse filme exigiu muito mais que os outros, principalmente do trio de protagonistas. E é com satisfação que eu digo que Daniel Radcliffe melhorou bastante e que faz bem seu papel. Emma Watson novamente dá um banho de atuação, apoiada por uma personagem excelente, a melhor da história. Rupert Grint também se sai bem, deixando de lado aquele ar “bacana” para ingressar em algo mais denso. Os demais destaques são habituais, como Helena Bonham Carter na pele da excêntrica Bellatrix Lestrange, e Ralph Fiennes como Lord Voldemort. Também temos Dobby de volta, reforçando o quanto os seres digitais podem assumir tamanha expressividade em cena.
A parte técnica compactua com todos esses elementos, auxiliando na afirmação daquele mundo fictício. Os efeitos sonoros são bastante realistas e trabalham bem na distribuição do som nos canais na sala de projeção. A fotografia de Eduardo Serra trabalha muito bem na diversidade de ambientes da trama e mantém o tom sombrio do filme anterior, com um pouco mais de sofisticação. A trilha de Alexandre Desplat é um primor e, apesar de ser bastante sutil, ela traz beleza aos momentos mais sensíveis do filme e mantém o tom de fantástico nos demais. Destaque também à equipe de efeitos especiais e visuais, e aos criadores da cena animada que conta a história das relíquias da morte, absolutamente bem construída, em narrativa e técnica.
Harry Potter é história. Dramático, melancólico, nostálgico, e corajoso, firmado em uma trama que pode ser repleta de elementos fantásticos e fictícios, mas que tem como foco seus personagens, e acima deles, o amor; ainda que hoje em dia isso seja considerado piegas. Mas a grande questão é a seguinte: A narrativa cinematográfica e a do livro exigem que seus espectadores amadureçam e se adaptem a contextos mais complexos. Afinal, não é exatamente isso que a história trata?