Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 29 de maio de 2010

O Escritor Fantasma

Nesta bela mistura de thriller político e filme noir, Roman Polanski mostra que nem a idade ou os problemas jurídicos podem roubar o talento de um bom cineasta.

Escritores fantasmas são verdadeiros artistas abnegados, nunca recebendo os loiros da fama por seus trabalhos, que são dados aos seus clientes, que acabam com todos os créditos da obra produzida por suas “sombras”. É uma profissão tematicamente fascinante, com muito potencial para histórias repletas de metáforas e subtextos.

O cineasta Roman Polanski, ao adaptar para o cinema o livro “The Ghost”, roteirizando-o ao lado do próprio escritor, Robert Harris, conseguiu trabalhar não só este lado magnífico da falta de identidade do fantasma, como também nos mergulhar em um eletrizante thriller político.

No filme, acompanhamos nosso protagonista, um escritor apropriadamente sem nome vivido por Ewan McGregor, que recebe uma proposta de terminar um rascunho de uma autobiografia do ex-premier britânico Adam Lang (Pierce Brosnan), já que o fantasma anterior – e colaborador de longa data de Lang – morreu inesperadamente em um trágico acidente em uma balsa.

O Fantasma é mostrado, desde o início, como um homem sagaz, percebendo que o trabalho não será nada simples, com um prazo apertado, além de ser potencialmente perigoso. Outrora um popular político, Lang vem caindo em desgraça junto ao público e ao seu próprio partido por seu auxílio desregrado à política externa norte-americana no que tange ao combate ao terrorismo (em uma claríssima alusão a Tony Blair). A situação chega a níveis insustentáveis quando uma acusação do Tribunal Internacional de Haia força o político a praticamente se exilar nos EUA com sua esposa, Ruth, vivida pela bela Olívia Williams.

Chegando ao isolado esconderijo de seu cliente, o Fantasma acaba se envolvendo cada vez mais com os problemas de Lang, que está ligado em bem mais intrigas do que o escritor pode imaginar. Conspirações, traições e destinos possivelmente trágicos permeiam essa trama, que é narrada de um modo bastante eficiente, costurando muito bem elementos do cinema noir clássico e de thrillers políticos.

A condução cadenciada do filme é um dos seus grandes pontos fortes. Histórias de mistério possuem um segredo bastante intrincado de serem levadas de modo a nem deixar o público com a impressão de que a solução está sendo apressada, muito menos de possuírem um ritmo arrastado. O filme leva o seu tempo apresentando os seus personagens, deixando crescer a tensão e a paranoia, ao mesmo tempo em que dá algumas respiradas mais leves, com um humor cínico e cômico até.

As relações entre os personagens também são um ponto forte, justamente pelo ponto focal do filme ser o Fantasma. Junto dele, acabamos por descobrir aos poucos mais e mais sobre o funcionamento da vida de Lang, bem como suas ligações com sua esposa e com sua assistente Amélia (Kim Cattrall). Ao nos permitir explorar aquele núcleo junto do protagonista, o filme nos permite saborear junto dele cada uma das descobertas feitas ao longo da projeção, sem nenhuma delas parecer muito forçada.

Um outro personagem que vale a pena ser citado é Mike McAra, o assistente de Lang que morre logo no início do filme. O falecido e o Fantasma interagem de um modo bastante peculiar, com este último relutando e muito em assumir o “lugar” do morto nos mais diversos sentidos (há uma cena envolvendo um par de chinelos muito bem sacada).

Isso não seria possível se não fosse a atuação centrada e madura de Ewan McGregor que, repleto de carisma, humaniza o Fantasma, carregando o filme com segurança e sutis toques de humor, fazendo com que nos importemos com o personagem e, por meio de pequenos lances de inteligência e sagacidade, reconheçamos sua esperteza e levemos a sério sua paranoia, algo primordial para o suspense do filme.

Outro membro do elenco que realmente se destaca é Olívia Williams como a esposa de Lang, Ruth. Introduzida de um modo bastante histérico, logo descobrimos que ela se trata da proverbial “força por trás do trono”, pelo menos até a chegada de Amélia, o que abala seriamente o seu casamento. Williams é mostrada como um vulcão emocional para o público e sua beleza clássica, que é ressaltada pelas marcas naturais da passagem do tempo em sua face, cai como uma luva para a personagem. Já Amelia, vivida por Kim Cattrall, se mostra inicialmente gélida, se revelando aos poucos para o público, de modo bastante leve e apropriado.

Pierce Brosnan, por sua vez, empresta todo o seu charme ao seu Adam Lang, mostrando o personagem desde o início como um homem de convicções fortes, que pode ser charmoso e temperamental ao mesmo tempo. Temos ainda breves, porém marcantes, participações especiais de atores como Tom Wilkinson e o veteraníssimo Eli Wallach, ambos trazendo ainda mais brilho ao cast da fita. Cito ainda uma participação bastante surpreendente de um irreconhecível James Belushi, logo no início do filme como um cínico executivo literário.

Polanski mantém seu senso estético apurado. Além de um elegante trabalho de câmera, vida a cena do bilhete no clímax do filme, bem como a tomada que encerra a produção, temos a maneira espetacular com a qual ele retrata o reduto de Lang, em transparências que conseguem ser tremendamente intimidantes. O design de produção e a direção de arte são soberbos e só melhoram com a paleta de cores cinzenta e opressiva utilizada pelo cinematógrafo Pawel Edelman.

Pontuada ainda por uma brilhante trilha de Alexandre Desplat, a produção é um suspense de primeira linha, com sutis críticas à hipocrisia e interesses políticos, filmadas por um dos maiores expoentes do cinema que, mesmo envolto em polêmicas, sabe como agradar a um fã da sétima arte como poucos. Recomendado.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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