Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

A Fita Branca

Laureado com a Palma de Ouro de 2009, Michael Haneke pinta em branco-e-preto admirável um conto sobre a violência e as origens do mal. Ainda que o formalismo e a rigidez do filme exagerem no tom, o resultado final traz uma sugestão inquietante.

A voz que nos conta essa história é rouca, desgastada pelo tempo. Mas as memórias que ela narra são as de um homem jovem, um professor que lecionava em uma vila no norte da Alemanha no ano de 1913. Décadas mais tarde, esse jovem recordará, na narração em off do filme, os incidentes fatídicos que se sucederam naquele lugar, sempre voltando sua atenção para as crianças da vila.

Ainda que não seja um filme policial, não seria de todo desproporcional qualificar “A Fita Branca” assim. Uma sociedade fechada, praticamente feudal, em uma Alemanha puritana, tem a sua (aparente) tranquilidade abalada por uma série de episódios violentos. Existe uma inquietude na busca pelos culpados. Mais uma vez, a atenção recai sobre as crianças.

O diretor Michael Haneke não falha em ressaltar o quão reacionária é essa pequena comunidade, que prima com extrema rigidez por uma educação cristã. A severidade dos valores faz com que os adultos cometam frequentes atrocidades contra as crianças, para que elas não se esqueçam nunca do dever que têm de conservarem sua pureza, simbolizada pela fita branca amarrada em seus braços. No entanto, a violência psicológica e física sofrida pelos mais jovens implica em uma reação, e é nesse ponto que o diretor austríaco faz do vilarejo um observatório do mal que começa a germinar. A tese de Haneke é simples (talvez até simplista) e exposta com grande esquematismo: a repressão social nutre a violência e as vítimas podem se transformar em monstros mais cruéis do que seus opressores foram.

Michael Haneke é rigoroso, exigente, um moralista sério. No conjunto da sua obra, ele sempre filma o desenvolver da violência, o mal que se espalha como um vírus. Em “A Fita Branca”, ele o agarra na sua origem e estuda as suas raízes. O filme apresenta os fatos, mas deixa em aberto qual conclusão se pode tirar deles. No entanto, somando-se as circunstâncias, o resultado não é difícil, e perturba. Estamos às vésperas da Primeira Guerra. Quem serão esses jovens loiros de rostos angelicais em 1933, quando tiverem seus trinta e poucos anos? O diretor não escancara essa ideia, ela é latente no filme. É uma perspectiva interessante se considerarmos o vilarejo alemão e o “nascimento do mal” como simbologias, nada além de uma metáfora, porque percebê-los como uma realidade concreta, a partir da qual se explicaria o nazismo, seria um tanto ingênuo.

Lento e suntuoso, esse é um filme cujo formato é de encher os olhos. O domínio do preto-e-branco é sublime, faz pensar em Bergman, e a profundidade de campo se estende em longas paisagens, onde as plantações de trigo se dissolvem na luminosidade saturada, englobando as noções de ordem e pureza que doutrinam os personagens. A ausência de música é total (salvo quando os personagens tocam instrumentos), os atores são muitíssimo bem sucedidos, a mise en scène é precisa e rigorosa. A Palma de Ouro de 2009 é um filme formalista, sem dúvida.

E foi uma Palma há muito esperada, sendo que a grande maioria dos filmes de Michael Haneke foi apresentada em Cannes. Em 2001, “A Professora de Piano”  era um dos favoritos ao prêmio principal. Em 2005, “Caché” era o queridinho da imprensa, mas também não levou o prêmio. Por fim consagrado com a Palma, não é arriscado dizer que o diretor não tarda a presidir o Festival. Recompensar “A Fita Branca” é recompensar uma proposta radical de cinema, e isso é justo. Ainda assim, a escolha do júri foi polêmica.

A conhecida estratégia de distanciamento do cineasta austríaco – normalmente motivada a afastar o espectador da história a fim de causar uma reflexão – fica clara no filme. Haneke não aponta os criminosos e mantém a violência física no extracampo. Mas esse procedimento tem como efeito colateral uma falta evidente de emoção. Bem mais do que os indivíduos, são os conceitos, os sistemas e as mensagens que parecem interessar o diretor, o que não é necessariamente um princípio ruim, mas somado à austeridade constante da narrativa, o conceito começa a se tornar enfadonho ao longo dos seus 144 minutos.

Para um filme que se pretende moralmente inquietante, “A Fita Branca” insiste tanto na sua rigidez que acaba se perdendo nela. Haneke é um grande cineasta, mas coloca em seu filme um olhar que tem algo de prepotente, um certo “entendam-a-mensagem-como-quiserem” desnecessário. Apesar disso, a ideia de criar uma espécie de conto que funciona como prefácio para os horrores do nazismo é, no mínimo, intrigante. E quando deixamos os personagens para trás, levamos conosco uma angústia. Por fim, “A Fita Branca” cumpre o seu papel: provoca.

M. Martinez
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