Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Guerra ao Terror

Intenso, psicológico e real, "Guerra ao Terror" é um retrato fiel do estilo de vida dos soldados americanos no Iraque, em uma fita interessante não só do ponto de vista visual, mas principalmente do narrativo.

Antes de tudo, vamos falar um pouco sobre a estranha história de “The Hurt Locker” aqui no Brasil. Nosso país recebeu esse filme em DVD em março de 2009, antes mesmo das salas comercias dos EUA, com o péssimo título de “Guerra ao Terror”. A capa do DVD anunciava em destaque os atores mais conhecidos que participaram da película, ou seja, Guy Pearce, Ralph Fiennes e David Morse, ignorando completamente os verdadeiros protagonistas da trama.

Um título nacional mais adequado do que “Guerra ao Terror” seria “O Terror da Guerra”. Ao contrário do que a distribuidora tenta vender com esse horrível título, este filme não é mais uma peça da mídia ideológica estadunidense tentando provar que o país estava certo ou errado ao invadir o Iraque. O roteiro de Mark Boal é mais inteligente do que isso, tratando a invasão como um fato consumado, algo que aconteceu. A questão aqui são as consequências deste ato para os soldados americanos envolvidos no conflito.

A trama é focada na Companhia Bravo, um esquadrão anti-bombas lotado em plena zona urbana iraquiana. Após a morte de seu antigo líder de esquadrão (vivido em uma quase-ponta por Guy Pearce), os soldados Sanborn (Anthony Mackie) e Eldridge (Brian Geraghty) recebem o seu novo líder, o Sargento James (Jeremy Renner).

Inicialmente retratado como um inconsequente, logo percebemos que James é um ser humano bastante complexo assim como um experiente perito em desativar explosivos. O caminho dos três no mês restante antes do rodízio obrigatório que os levará para casa será bastante árduo e cheio de perigos, principalmente para a saúde física e mental destes combatentes.

O grande acerto deste longa, comandado com maestria por Kathryn Bigelow, é retratar o conflito de uma maneira tremendamente pessoal, não só da parte técnica, como também da narrativa. Sem gigantescas e “heróicas” cenas de batalha que poderiam distrair o espectador dos horrores e da tensão brutal aos quais aqueles homens são submetidos, a cineasta nos coloca ao lado daquelas pessoas, se valendo não apenas de câmeras de mão ou de um visual tremendamente realista, mas pelas emoções transmitidas pelos atores.

Nesse sentido, Jeremy Renner, interprete do Sargento Will James, foi um achado. De cara, pensamos que se trata de mais um cowboy americano autodestrutivo, típico personagem de filmes de ação, mas há muito mais que isso nele. Pai de família que foi jogado em duas guerras ao mesmo tempo, o conflito acabou se tornando parte de sua natureza, de quem ele é, substituindo até mesmo o amor de seus entes queridos. Apesar de guardar ainda sua humanidade e de externá-la em sempre que pode, fica claro para o espectador que ele se tornou um viciado na guerra.

Isso o torna um grande risco para seus comandados. A despeito de sua competência, James tende a se submeter a situações de risco ao lado de seus companheiros de farda, algo que assusta seus subordinados diretos, os soldados Sanborn e Eldridge. Os atores Anthony Mackie e Brian Geraghty conseguem tornar seus personagens figuras tridimensionais, sem jamais estes serem eclipsados por James, por mais que a fita tenha nele seu principal personagem.

O relacionamento de Sanborn com James, por exemplo, se torna bastante complexo graças aos atritos dos dois e sua evolução é algo fascinante de se acompanhar, principalmente quando se fala na questão dos filhos e do medo que o durão Sanborn apresenta em tê-los, algo que leva a uma tocante cena entre os dois soldados após uma missão.

Por sua vez, Brian Geraghty vive com sutileza o jovem Eldridge como uma pessoa que carrega o peso de ter tido a chance de salvar um companheiro e falhado, algo que o coloca sob as visas do psicólogo da base e que é retratado pelo ator com delicadeza. Em uma sutil ironia do roteiro, em um momento de folga, vemos Eldridge jogando um game da série “Gears of War” (“As Engrenagens da Guerra”), mostrando o quanto a cultura bélica está enraizada naqueles soldados.

Outras “classes” de personagens são apresentadas rapidamente pelo filme, como os insurgentes e os mercenários, sendo estes últimos liderados em uma pequena participação de Ralph Fiennes, gerando uma das cenas mais tensas do filme. A questão dos insurgentes, aliás, levanta uma série de questionamentos sobre estes. Ora, a Guerra do Iraque é um conflito sui generis na história militar dos EUA pelo fato de que, a cada esquina, há um perigo potencial à espreita, levando a paranóia – muitas vezes justificada – dos soldados a níveis extremos.

Essa mesma paranóia pode levar a criação de novos inimigos, algo notado por James em um afiado e ambíguo comentário após a apreensão de um possível inimigo. Chama a atenção como os rebeldes, que deveriam ser os “vilões” do filme, são mostrados como figuras etéreas, com o público mal vendo a preparação de suas ações, algo que aumenta o temor dos soldados, que acabam por tomar atitudes precipitadas quanto aos nativos por puro medo, já que qualquer um deles pode ser um comatente inimigo. Deste modo, as atitudes mais repulsivas tomadas em cena são justamente de um oficial do exército, mais precisamente do coronel vivido por David Morse, que chega a negar socorro a um ferido que poderia ser salvo.

O ritmo do filme é excelente, devendo ser louvada a montagem realizada por Chris Innis e pelo experiente Bob Murawski. A dupla evita os cortes insanos à lá Michael Bay e insere o público dentro da rotina da Companhia Bravo, em um trabalho que nos remete à edição dos dois últimos filmes da franquia “Bourne”, com tomadas ágeis e seguras, mas que levam a um entendimento da película nas cenas de combate, ajudando a construir a tensão nestas sequências, não a confundir a audiência.

Deste modo, a filmagem semi-documental realizada por Bigelow é enriquecida, com a imersão do público dentro daquelas cenas acontecendo de maneira orgânica, vide a fantástica cena do duelo entre dois franco-atiradores, simplesmente de tirar o fôlego. Recursos como câmera lenta são utilizados de maneira pensada sempre na narrativa, não como uma mera alegoria estética.

Outro ponto forte do filme é a cinematografia, que ficou por conta de Barry Ackroyd, profissional que, não por acaso, trabalhou com Paul Greengrass em “Vôo United 93”. Se utilizando de uma paleta de cores bem naturalista, Ackroyd só se utiliza de um tom de coloração mais estilizado em uma cena de destruição noturna, retratada como se fosse a descida de James ao inferno.

Kathryn Bigelow e Mark Boal merecem aplausos por mostrarem os combatentes no Iraque de uma maneira tão humana como a retratada aqui, sem a propaganda acéfala que cineastas como Michael Bay realizam do exército norte-americano ou um posicionamento excessivamente político como o que aconteceu em “Leões e Cordeiros”, de Robert Redford.

O que se tem lá no Iraque é um grupo de pessoas submetidas a um stress físico e mental sobre-humano, que os afetarão independentemente de etnia, credo ou filiação partidária. O calor da batalha é uma droga que não vicia a todos, mas queima a qualquer um exposto a ele e é isso o que foi colocado neste filme. Recomendado.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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