Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 30 de janeiro de 2010

8 1/2

Filme de Fellini que serviu de inspiração para o musical "Nine".

Saudar a grandeza de “8 1/2” (“Otto e mezzo”, 1963) e a sua contribuição inegável ao cinema em apenas algumas linhas é muito como o problema do personagem Guido, o cineasta-espelho do próprio Fellini: dá uma espécie de paralisia face à amplitude da tarefa. O diretor italiano não foi o primeiro a voltar seu olhar para o drama que pode ser o processo criativo (vale citar o notável “Crepúsculo dos Deuses” (1950), de Billy Wilder, que segue essa mesma ideia). Mas Federico Fellini joga de lado todos os parâmetros que outros haviam estabelecido para representar a criação e o universo que é o cinema, propriamente dito. “8 1/2” é uma obra fundadora, dona de uma riqueza e inteligência muito particulares, que tecem um meta-cinema revelador do próprio filme que vai se construindo.

O título enigmático faz referência ao número de filmes realizados pelo diretor até 1963. Irreverente, Fellini conta o curta-metragem “Boccaccio 70″ (1962) como metade de um filme, logo, “8 1/2”  é o oitavo filme e meio de sua carreira. A história gira em torno do personagem alterego de Fellini, o renomado cineasta Guido Anselmi, que vive uma crise criativa e não consegue avançar com seu próximo projeto. Guido é constantemente pressionado e todos se afligem com sua falta de direção e posicionamento, ele principalmente. Mas o personagem não admite a ninguém a sua seca de ideias e se refugia aflito no seu inconsciente, nas suas lembranças de infância e nas suas divagações sobre as mulheres da sua vida.

No entanto, seria um pleonasmo dizer simplesmente que o longa é uma obra que trata da criação artística, tanto esse é o assunto base do filme, aquele que descaradamente nos salta aos olhos. Longe do rigor de Truffaut em “A Noite Americana” (1963), por exemplo, Fellini opta por uma reflexão quase metafísica sobre a criação, no geral, e o cinema, em particular.

Não há dúvidas de que a arte gosta de decorrer sobre ela mesma, sobretudo em momentos de dolorosa crise criativa. Isso já foi feito e refeito milhares de vezes; a metalinguagem é uma solução, senão querida, recorrente no cinema e fora dele. Mas Fellini reinventa com tal maestria o tema, que é como se o inaugurasse de novo, por meio desse universo que é tão característico seu. “8 1/2” é referência. Depois dele, a metalinguagem no cinema não pode mais ser a mesma.

À exceção de alguns de seus longas-metragens, a maior parte dos filmes do diretor italiano é autobiográfica em algum nível. Os intérpretes masculinos são muitas vezes imagens do próprio Fellini, e Marcello Mastroianni, que vive o papel de Guido, é o mais evidente deles. “Eu não sou Marcello Mastroianni. Ele é meu sósia, meu alterego. Se ele veste meu chapéu é porque eu o forço a se parecer comigo, porque esse é o modo mais fácil de se enxergar o personagem e sua história”, admite Fellini sobre o ator, que trabalhou com ele também em outros filmes.

Na longa lista das obras que o diretor realizou, o personagem-Fellini nos manda muitas vezes para a infância ou juventude do cineasta, enquanto “8 1/2” é certamente o mais próximo do Fellini adulto, do artista. De tão memorável e característico, ele ganhou um adjetivo nos dicionários de língua portuguesa. Felliniano é aquele: 1. Pertencente ou relativo a Federico Fellini, cineasta italiano (1920-1993), ou próprio dele e/ou de sua obra. 2. Que é admirador e/ou conhecedor da obra de Fellini. 3. Que tem caráter onírico. (Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa).

Iniciado nos ideais do cinema neo-realista italiano e discípulo de Rossellini, é com “8 1/2” que Fellini faz a transição para as narrativas de caráter onírico, sua marca particular, que não o deixaria mais a partir daí. O tom surrealista do filme é constante, mas não denso. Ele faz graça para o espectador, muitas vezes se aproxima de uma perspectiva infantil, circense.

É curioso saber como Fellini criava seus personagens – ele os desenhava, antes de tudo. Não era adepto do storyboard, preferia traçar, casualmente e em cores vibrantes, as figuras de forma caricata, exagerando nos detalhes dos figurinos. Depois de sua morte, esses desenhos já foram publicados algumas vezes e as caricaturas se refletem claramente no visual hiperbólico de alguns  de seus personagens clássicos.

Ainda que “8 1/2” seja considerado o seu filme mais pessoal, Fellini nunca cansou de lembrar a quem o perguntasse que era um grande mentiroso, deixando subentender que havia inventado muitas das memórias autobiográficas contadas neste filme. No fundo, isso pouco importa, porque à imagem do seu final grandioso, sob a atmosfera onírica e a melodia imperial de Nino Rota, ele nos diz que no cinema, a imaginação sem limite é maior do que a preocupação com a veracidade que um filme, ainda que metalinguístico e autobiográfico, possa ter.

M. Martinez
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