Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Onde Vivem os Monstros

Inteligente e delicado, Spike Jonze soube adaptar o clássico infantil.

Pensando em seus dois filmes precedentes, “Quero ser John Malkovich” (1999) e “Adaptação” ( 2002), Spike Jonze, realizador intelectual e irônico, talvez não fosse o candidato ideal para transcrever para o cinema uma peça de literatura infantil. Mas o preconceito se mostra descabido logo na primeira sequência de “Onde Vivem os Monstros”, quando as imagens fluidas do jovem protagonista Max (Max Records) brincando na neve já entregam a sensibilidade do filme. Diretor inteligente e inovador, sempre usando uma certa loucura como artifício que dá significado às suas ideias, Spike Jonze descobriu na obra de Maurice Sendak o material ideal para deixar correr livre a sua poesia onírica.

Escrito e ilustrado por Sendak em 1963, “Onde Vivem os Monstros” é uma obra cultuada da literatura infantil norte-americana. Composto de numerosos desenhos e apenas 338 palavras, o livro é um storyboard de luxo para o diretor, ditando as bases do universo visual do filme, sem, portanto, desenvolver uma trama narrativa complexa. O fato de Jonze se jogar nesse universo visual de Maurice Sendak é ao mesmo tempo uma evidência e uma surpresa: as possibilidades oferecidas pelo grafismo do livro são imensas, e assim como o filme é muito fiel ao espírito do livro, o resultado da obra cinematográfica como um todo é uma produção extremamente pessoal.

Max é um garoto inventivo de nove anos. Um explorador, como ele mesmo se define. Quando, em um dia de inverno, os acontecimentos na sua casa o aborrecem, ele se revolta contra a mãe e a irmã, fugindo. Corre sem parar e não olha para trás, não se sabe se por horas ou dias, atravessa o mar em seu barquinho à vela, enfrenta grandes tormentas e desembarca na ilha onde estão os monstros, com os quais passará a viver. A ilha é como um lugar de sonho feito de elementos familiares: dunas de areia, praias e florestas de coníferas. Quanto aos monstros, suas intenções são sempre dúbias, não se pode ter certeza se eles querem adotar Max como seu rei ou devorá-lo no jantar.

Sem nunca perder de vista o livro de Sendak, a concepção dos selvagens do longa foi uma escolha obviamente audaciosa de Spike Jonze, que utilizou pouquíssima computação gráfica. Alguns animatronics e atores vestidos de monstros foram o suficiente. Em tempos de “Avatar” (2009) e James Cameron, chega a ser irônica a facilidade com que o espectador embarca na realidade das criaturas cujo físico é conceitualmente antiquado (me remete instantaneamente a Falkor, o inesquecível dragão-cachorro voador de “A História Sem Fim”, de 1984, grotescamente doce).

Mas apesar de parecer retrógrada e causar estranheza em um primeiro momento, a proposta visual de Spike Jonze, com suas locações reais e fantasias de monstros, são calculadamente coerentes com a obra literária e, principalmente, com a atmosfera surreal e lúdica que o filme explora. Além de que, talvez, para as próprias crianças, o fato de os selvagens serem como bonecos não seja tão chocante, e sim muito mais aceitável.

Tanto na estética quanto na própria trajetória dos personagens, todos os surrealismos e estranhezas são tratados como se fossem perfeitamente plausíveis. Spike Jonze não ridiculariza os devaneios do pequeno Max. Pelo contrário, a verossimilhança no filme não é nunca posta em xeque, e isso confere uma legitimidade à perspectiva do garoto. O tom do longa é sério, sóbrio. Uma posição interessante se tratando de uma narrativa que decorre sobre a infância. A poesia visual é palpável a cada plano e o potencial dramático atenta sempre para não menosprezar as turbulências emocionais de uma criança. São raras as obras que abordam o tema com tal sinceridade e franqueza. “Onde Vivem os Monstros”, por sua vez, reflete sobre a infância olhando-a nos olhos, de igual para igual.

Por meio de uma fotografia que revela ares de cinema independente, a câmera de Spike Jonze funciona como um voyeur. Muitas sequências são pontuadas pela impressão de que um observador oculto analisa as situações, vendo tudo que se passa, escondido atrás dos móveis da casa ou das árvores da ilha. As imagens ficam recortadas, reenquadradas por esses objetos desfocados, que a câmera vê em primeiro plano. Inegavelmente metafórico, este é um filme analítico, um estudo cujo objeto são as tempestades e calmarias do coração.

A linha narrativa é bipolar: alterna momentos de tensão com explosões de euforia. Silêncio com músicas entusiasmantes. A encarregada pelo conjunto da trilha sonora foi Karen O, genial vocalista do Yeah Yeah Yeahs, que convocou nomes do rock-and-roll indie para comporem no filme. O resultado é muito bem sucedido e foi pensado de acordo com a proposta de Spike Jonze.

A cada música, há uma energia imediata, que colabora para um lado ou para o outro na constante oscilação entre alegria e desespero. Nesse sentido, os monstros também nos mostram uma dualidade que os torna muito mais complexos do que normalmente se vê em filmes para o público jovem. Engraçados e enraivecidos, brincalhões e tristes, afetuosos e agressivos, também eles são personagens ambíguos.

Durante todo o tempo, Max usa uma fantasia de fera, como um pequeno lince que deixa aparecer seu rosto, uma tímida tentativa de pertencer àquele grupo de monstros. Ele se reveste porque quer ser um deles. No fundo, o garoto já é cada um deles. Cada uma daquelas criaturas selvagens é uma pulsão sua, uma alegoria para os seus sentimentos, que brigam entre si. A mensagem é clara desde o título, cuja nuance infelizmente se perdeu na tradução para o português. Originalmente o filme é batizado de Where de Wild Things Are (“Onde Estão as Coisas Selvagens”, em português), com o subtítulo There’s one in all of us (Existe uma em cada um de nós).

Por causa da sua sobriedade ao tratar das turbulências emocionais, que se aplicam a qualquer idade, a reação mais instintiva do público e da crítica norte-americana foi dizer que “Onde Vivem os Monstros” é um belo filme sobre a infância, mas que não é de forma alguma adequado para os espectadores mais jovens. Penso exatamente o contrário: Não subestimemos a sensibilidade e inteligência das crianças. Spike Jonze não o faz. E a sua maneira de falar do universo infantil sem condescendência é de uma elegância exemplar.

M. Martinez
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