Figurino de caçador, cachimbo em forma de "S", lupa, postura impassível e soltando um "Elementar, meu caro Watson" a cada dedução. Esse é o Sherlock Holmes vivo no imaginário popular. Seguindo a moda de revitalizar personagens consagrados, o cineasta Guy Ritchie foi o escolhido para mostrar ao público uma versão mais moderna do universo de "Sherlock Holmes".
Não nos convêm aqui debater as diferenças entre o Holmes criado por Sir Arthur Conan Doyle e o apresentado por Guy Ritchie em “Sherlock Holmes”. Os tempos avançam, culturas mudam e alguns personagens e histórias tendem a ganhar novas releituras com o passar do tempo. É um fato inegável. Mas o longa também reconhece a natureza icônica do personagem. Ora, está escrito na própria tessitura da Cultura Pop que Holmes é o maior detetive do mundo, que vive em Baker Street na Inglaterra vitoriana e soluciona casos impossíveis se utilizando da lógica ao lado de seu parceiro Watson. Deste modo, Ritchie e os roteiristas do longa nos poupam de uma desnecessária trama de origem e nos levam diretamente à ação.
Contratados para solucionar o sequestro de uma jovem, Holmes (Robert Downey Jr.) e Watson (Jude Law) salvam a garota de um ritual oculto realizado pelo sinistro Lorde Blackwood (Mark Strong). Condenando à forca pela morte de cinco outras garotas, o vilão aparentemente retorna do outro mundo para tomar a Inglaterra com uma sinistra conspiração. No meio de tudo isso, está a amizade de Holmes e Watson, quando este último anuncia seu noivado com Mary Morstan (Kelly Reilly). Além disso, o detetive ainda tem de encarar a volta de sua antiga paixão, a golpista Irene Adler (Rachel McAdams), fato que pode estar ligado às ações de Blackwood e ao surgimento de um perigoso adversário.
Desde os trailers, fica bem claro que o sucesso ou não desta empreitada ficaria nas costas de seus dois protagonistas. Será que o público aceitaria uma dupla Holmes/Watson mais voltada para os jovens, ávidos por ação e visuais modernos? A resposta é positiva. Graças à química entre Robert Downey Jr. e Jude Law, acreditamos em cada momento de picuinhas e camaradagem entre os dois. A arrogância e prepotência de Holmes, temperada com o sarcasmo habitual de Downey Jr., somadas com a elegância e o ar de cavalheirismo de Jude Law formam uma mistura perfeita.
A despeito da genialidade de Holmes, este é uma pessoa bastante peculiar e difícil de se conviver, possuindo um cinismo único, diversas manias excêntricas e modos bizarros de expor sua inteligência, que só são suportadas por seu companheiro, com Watson sendo o ponto de ordem na vida do detetive (afinal até seus relacionamentos amorosos tendem a ser bagunçados). Enquanto isso, as diversas aventuras nas quais Sherlock se envolve acabam por dar uma certa alegria à vida de Watson, tirando-o do marasmo de uma vida burguesa praticando medicina. O resultado é uma relação de necessidade mútua entre o detetive e o médico, na qual um precisa do outro para manter o equilíbrio em suas existências.
Por falar em médico, é interessante notar algo. É sabido que a série de TV “House” se inspirou nas aventuras de Sherlock Holmes para criar seu protagonista. No entanto, nesta nova versão do detetive vitoriano, é impossível não notar algumas influências da relação entre House e Wilson (vividos na telinha por Hugh Laurie e Robert Sean Leonard) na dinâmica entre Sherlock e Watson, inclusive no “ciúme” sentido por cada um pelas respectivas paixões do parceiro. É uma simbiose interessante entra as duas franquias que não pude deixar de notar.
O vilão Lorde Blackwood, vivido por Mark Strong, consegue ser tão prepotente quanto Holmes, gerando fagulhas bastante interessantes entre o mocinho e o bandido. Strong é um ator de muita presença, fazendo com que seu personagem jamais seja apagado perante o carisma de seu antagonista. Já no elenco feminino, Rachel McAdams enfeitiça o público com a dúbia Irene Adler e seu caso sempre mal resolvido com Holmes. Já a bela Kelly Reilly, que admiro desde “Albergue Espanhol”, aparece pouco como a noiva de Watson, Mary, mas possui boas cenas contracenando com Robert Downey Jr., graças ao já citado ciúme sentido por Holmes em relação ao seu parceiro.
Enquanto em suas histórias clássicas Holmes nunca era mostrado como um herói de ação, esta nova versão do protagonista-título usa seus punhos de maneira tão hábil quanto seu cérebro. A vontade de lutar do detetive é mostrada, em alguns momentos, até como uma forma de autopunição, como se em determinadas situações, Holmes estivesse se castigando por algo, mas o ego daquele homem, como o próprio filme coloca, não o deixa fazer nada pela metade.
De um modo inteligente, Guy Ritchie nos mostra que, para o detetive, suas habilidades físicas são apenas mais um meio de demonstrar sua sagacidade, com cada um de seus movimentos, seja em uma luta ou em uma perseguição, sendo tão calculados quanto uma jogada de xadrez, adicionando uma nova faceta ao personagem, sem descaracterizá-lo.
O belo visual do filme é outro ponto positivo. Enquanto os figurinos dos protagonistas refletem muito bem suas personalidades (caos/ordem), a fotografia sombria e a cenografia mais “suja” dão à Londres vitoriana, geralmente retratada nas versões fílmicas da franquia de modo bastante inofensivo, um ar de perigo a cada esquina, em um tremendo acerto do diretor. Ritchie me surpreendeu na condução das grandiosas cenas de ação, todas empolgantes e em uma escala bastante elevada. Destaques para a luta que começa na casa de um anão ruivo, envolvendo um peculiar francês, e para uma explosiva sequência no final do segundo ato.
“Sherlock Holmes” caminhava a passos largos para se tornar uma ótima e deliciosa fita de aventura, mas veio o terceiro ato e, com ele, o final do filme. Bom, ao menos deveria vir. Ao invés de deixar meros “ganchos” para os próximos filmes de uma possível série, a produção simplesmente acaba sem resolver grande parte de seus arcos narrativos de maneira satisfatória, deixando tudo para um vindouro segundo longa que nem data de produção possui.
Quando isto é feito em uma série de filmes já programada (como a trilogia “O Senhor dos Anéis”) é uma coisa, mas no episódio inaugural de uma franquia tentando se estabelecer é outra, constituindo uma falha grave do longa, que pode mandar muitos espectadores para fora do cinema contrariados. A despeito desse escorregão, o filme vale a pena ser conferido, com este novo Holmes devendo ser bem recebido pelo público graças ao magnetismo de seu protagonista.
___
Thiago Siqueira é crítico de cinema do CCR e participante fixo do RapaduraCast. Advogado por profissão e cinéfilo por natureza, é membro do CCR desde 2007. Formou-se em cursos de Crítica Cinematográfica e História e Estética do Cinema.