Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 20 de outubro de 2009

Distrito 9

Produzido por Peter Jackson, o longa não hesita em ousar e mostra a população de Johanesburgo tentando conviver com a presença de alienígenas. Isso é mostrado de forma cruel, original e denunciadora.

Distrito 9Porém, como em toda boa ficção científica, tudo é uma alegoria para discutir problemas exclusivamente humanos. Dessa vez a temática central do filme é a segregação racial, que gera inevitável alusão com o apartheid sul-africano, mas permite comparações com outras opressões históricas contra minorias. Ao estilo documental, o diretor Neil Blomkamp prova que é possível realizar uma obra tão intensa quanto reflexiva.

Assim como em “9 – A Salvação”, estreia da semana passada, “Distrito 9” é inspirado em um curta-metragem. Em “Alive em Joburg” (2005), Blomkamp retrata a “invasão” dos extraterrestres, os problemas que a sua presença traz para a população e seus enfrentamentos com a polícia local. Se sobram boas intenções, falta orçamento para cumprir as pretensões do diretor, transformando a produção em algo risível e absolutamente amador. No entanto, com o envolvimento de Peter Jackson no projeto do longa-metragem, o capital chegou e possibilitou um incrível aprimoramento técnico do filme. A proposta cinematográfica continua a mesma, mas o resultado geral é bastante superior, criando uma película que agradará dos mais críticos aos menos exigentes.

Estamos na mais importante cidade sul-africana, Johanesburgo. Há cerca de 20 anos uma nave alienígena se instalou no céu do local, provocando medo nos cidadãos, mas causando conseqüências bem piores para os seus visitantes. Famintos, os extraterrestres foram resgatados pelo exército local e abrigados numa área exclusiva para eles, com direito a cerca de arame farpado e intensa vigia da polícia, o chamado Distrito 9. Eles não são tão hostis quanto se pensava, mas a fragilidade humana os transforma em “monstros”. Sem tecnologia para voltar para o seu planeta original, os aliens foram ficando, até se instalarem definitivamente.

À medida que o tempo passa, a presença deles apenas incomoda. Alguns fugitivos da área causam problemas aos humanos, como roubos, agressões e mortes. Com isso, placas proibindo a entrada dos pejorativamente chamados “camarões” (devido a sua semelhança com o marisco) são espalhadas pela cidade, retratando a existência de uma guerra civil.

A situação torna-se insustentável até que a empresa Multi-National United (MNU) é responsabilizada por retirar a população do distrito e levá-los para uma espécie de campo de concentração a incontáveis quilômetros dali. Liderando a operação está Wikus Van De Merwe (Sharlto Copley), um homem inseguro, competente e inocente demais para as intenções da MNU, que acaba sendo infectado por um vírus extraterrestre, iniciando um processo de metamorfose e ocasionando uma incessante perseguição.

Diferentemente de outras produções com alienígenas em sua história, esta não se passa em Nova Iorque, Washington ou Chicago. Estamos bem longe dos Estados Unidos e seu centralismo alien. O país é a África do Sul, e as dificuldades sociais são outras. Não estamos diante de uma cidade cheia de políticos importantes, que conta com uma polícia especializada e com uma população paranóica. Estamos diante de uma cidade com um marcante histórico de confronto racial.

O apartheid deixou marcas e ignorá-lo ao assistirmos a uma película com temática tão semelhante seria impossível. Os aliens são tratados ao molde dos negros naquela fatídica época, com área reservada para habitação, direitos civis limitados e preconceito irrestrito. A diferença está apenas na forma de exploração: os “camarões” são enclausurados e capturados para a realização de estudos científicos com o objetivo de imitar a incrível tecnologia de suas armas.

Mas não pense que este é um drama denso. “Distrito 9” é um filme de ação dos mais intensos com uma trama social como pano de fundo. E é exatamente este conceito que o diferencia de tantas outras películas de ficção científica. Não temos um universo paralelo ou cenários irreais, mas sim uma cidade verdadeira ocupada por seres extraterrestres, os quais são alvos de inúmeras teorias que questionam e defendem sua verdadeira existência. Para tornar a história ainda mais intrigante, o diretor Neil Blomkamp adota um caráter muito particular para contá-la. Misturando uma linguagem jornalística com um estilo ficcional realista, o cineasta transforma a película numa obra bastante verossímil.

A fita dialoga diretamente com o documentário, seja através de depoimentos de pessoas que presenciaram o fenômeno seja pela utilização de imagens de câmeras de televisão que faziam a cobertura da fuga de Van De Merwe. Mesmo quando é obrigado a mudar esse ponto de vista, principalmente para poder contar a trama em detalhes, Blomkamp faz questão de colocar a câmera na mão e dar closes espontâneos.

Beneficiando a sua proposta está a fotografia seca de Trent Opaloch e os efeitos especiais perfeitos, que retratam os ETs e as máquinas de forma eficiente, não fazendo feio frente a blockbusters como “Transformers” (quem assistir entenderá a comparação). A opção por mostrar de longe a nave-mãe estacionada no céu de Johanesburgo também contribui para dar uma sensação de grandiosidade a invasão alienígena. Tecnicamente, deve-se destacar ainda a edição eletrizante, que faz do filme um prazer.

Entretanto, o filme tem falhas evidentes e a maioria delas estão no roteiro assinado por Blomkamp e Terri Tatchell. O argumento, depois de sua introdução esplêndida, foca-se demais no personagem de Copley, deixando de lado a temática social. A impressão é de que o filme sucumbe a pretensão de Hollywood por bilheteria e a consequente necessidade por contar uma história com os elementos padrões de um roteiro cinematográfico. Além disso, são criadas cenas inverossímeis que destoam do estilo do filme, principalmente quando retratam o confronto entre Van De Merwe com um representante imbatível da MNU.

O elenco desconhecido de “Distrito 9” dá conta do recado, mesmo com algumas cenas no mínimo estranhas. É que a proposta realista da película exige bastante dos atores e alguns são incapazes de achar um tom certo para os seus personagens. O protagonista é o reflexo disso. Sharlton Copley começa hesitante, mas com o tempo percebemos que tudo faz parte de sua personalidade insegura. A intensificação de sua história lhe traz mais exigências cênicas, mas o ator as cumpre por completo, transformando-se numa revelação das mais surpreendentes.

Com US$ 30 milhões de orçamento, Neil Blomkamp deu origem a um filme cruel, original e denunciador. Utilizar uma invasão alienígena para abordar a segregação racial é uma idéia genial, apesar de ter faltado apenas um pouco mais de cuidado para torná-lo uma obra-prima. O desfecho em aberto, no entanto, deixa margens para que isso aconteça numa eventual continuação.

Darlano Didimo
@rapadura

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