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Colunas   quinta-feira, 06 de fevereiro de 2020

[COLUNA] 1917 e os filmes de guerra: cinema que transforma horror em arte

Indicado ao Oscar de Melhor Filme, o longa não é o primeiro e nem será o último a transformar algumas das passagens mais horrendas da história humana em deslumbre visual e artístico.

Dos nove indicados ao Oscar de Melhor Filme de 2019, “1917” chama a atenção por seus feitos técnicos e pela impecabilidade de sua fotografia. Filmado de modo a simular um enorme plano sequência, ou seja, uma cena que se desenrola sem quaisquer cortes ou edições diretas, o filme traz seu personagem principal afundado nas trincheiras e correndo pelos campos da Primeira Guerra Mundial – conflito que está entre os mais letais da história da humanidade.

Além dos méritos de sua fotografia, o longa também se destaca em outros aspectos visuais como o design de produção, os efeitos visuais e a maquiagem – categorias em que também recebeu indicações à premiação máxima da indústria hollywoodiana. Ainda que seu primor salte aos olhos como algo belo e virtuoso, as cenas retratadas e os momentos vividos pelo protagonista da obra são de puro horror, aflição e tensão.

Naturalmente, “1917” não é o primeiro filme a realizar tal feito. Na verdade, muitos filmes de guerra são elogiados e adorados justamente por essa maestria de aspectos técnicos, considerando que cenas de batalha e de imensa destruição exigem sets de filmagem grandes, complexos e caros, além de trabalho redobrado por parte da equipe por trás das câmeras. Tentar recriar a grandeza de alguns dos maiores conflitos pelos quais a humanidade já passou dentro de um estúdio ou em locação é uma tarefa árdua e exigente, e não é à toa que tantos filmes desse tipo são lembrados como algumas das grandes obras do cinema.

O Resgate do Soldado Ryan (1998)

É o caso de clássicos como “Apocalypse Now“, de Francis Ford Coppola, “Platoon“, de Oliver Stone, e “Nascido Para Matar“, do diretor Stanley Kubrick, obras cujo legado pode ser sentido em qualquer filme que retrate temas bélicos subsequente. É também o caso de outros longas premiados pelo Oscar, como “O Resgate do Soldado Ryan“, de Steven Spielberg, “Além da Linha Vermelha“, de Terrence Malick, e do mais recente “Dunkirk“, de Christopher Nolan. Não por acaso, os cineastas associados a estes projetos são alguns dos maiores nomes da história da indústria do cinema do passado e do presente.

Como é possível, então, que o cinema seja capaz de usar tudo o que há de melhor em sua técnica para retratar momentos profundamente sombrios? Como transformar períodos da história marcados pelo sofrimento e pela violência em algumas das obras mais belas já feitas? E o principal, como fazer isso sem que o filme pareça uma mera exploração plástica do que um dia foi o sofrimento de pessoas reais? Sem que se perca o peso do horror a ser retratado?

A resposta está no elemento humano intrínseco a todo longa de guerra. Quase como regra, projetos como “1917” trazem em seu cerne questões humanas fundamentais à trama ou ao desenvolvimento de seus personagens principais. Isso varia de questões existenciais básicas e presentes em todo ser humano, como o medo da morte ou a busca por esperança quando tudo mais parece perdido, até dilemas profundos como a obrigação de seguir ordens e destruir inimigos que, por sua vez, também estão só seguindo ordens.

Além da Linha Vermelha (1998)

Filmes que retratam guerras em que existe um inimigo mais claro (Segunda Guerra Mundial, por exemplo) costumam apoiar-se mais nas questões básicas e no desejo por sobrevivência enquanto o inimigo – que deve ser combatido – serve como ferramenta da trama para avançar a história e causar problemas para os protagonistas. Nesse caso, costuma-se focar bastante na irmandade entre os soldados no fronte de batalha e em seu empenho em proteger uns aos outros. O mal os encara de frente, e os personagens devem buscar forças uns nos outros e naquilo que os torna diferentes do inimigo.

Por outro lado, há longas que abordam guerras onde não há um inimigo tão claro – ou, pelo menos, a definição de inimigo é contestada pelo próprio filme. É o caso, muitas vezes, de obras que se passam durante a Guerra do Vietnã, onde as ações do exército e do governo americano costumam ser no mínimo tão contestadas quanto as do lado oposto. Nesse tipo de situação, o trabalho dos personagens e suas questões costuma passar por um tratamento diferente, em que a posição dos seres humanos dentro daquele embate e sua busca por sentido dentro de uma destruição que devasta ambos os lados toma o centro.

O que se observa em ambos os casos é que os dilemas e problemas psicológicos e emocionais dos seres humanos são muito mais importantes do que a política ou a lógica da guerra em si. E, dessa forma, a violência e o horror deixam de parecer uma consequência do conflito, e tornam-se ferramentas narrativas que ajudam a construir uma situação em que a condição humana é levada ao extremo. Nesse ambiente, torna-se muito mais fácil expor a guerra pelo que ela é, e não como um simples embate entre lados opostos.

Ou seja, por maior que seja a beleza e a qualidade técnica de um filme de guerra, o modo como a trama escolhe empregá-las as torna um meio de destacar o horror do conflito e expô-lo justamente como a parte sombria, suja, e que deve ser combatida do ser humano. Independente de qual tipo de trama estamos falando, a violência e o sofrimento são sempre o que acaba impulsionando o protagonista a superar os obstáculos e tornar-se a pessoa diferente que precisa ser para alcançar seus objetivos.

1917 (2019)

A cerimônia de entrega do Oscar acontece no próximo domingo, dia 9, e “1917” está indicado em um total de dez categorias. O filme tem vencido em diversas premiações ao longo desta temporada, e surge como um grande favorito para o prêmio principal da Academia. Se a obra dirigida por Sam Mendes é ou não o melhor que 2019 ofereceu aos cinemas, certamente várias discussões tentarão responder. O fato é que “1917” cumpre o que foi proposto, e no meio do caos da guerra, mostra uma história de perseverança.

Tiago Fiszbejn
@tfiszbejn

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