Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 15 de agosto de 2009

Arraste-me para o Inferno

"Arraste-me Para o Inferno" marca o retorno de Sam Raimi ao gênero terror após alguns anos lidando com um certo herói aracnídeo. De volta ao gênero que o consagrou, o cineasta faz a alegria dos fãs, presenteando-os com um longa extremamente divertido e assustador, em um "terrir" perfeito.

No início dos anos 1980, um jovem diretor chamado Sam Raimi criou uma franquia a partir de efeitos especiais toscos, muita imaginação e um roteiro absurdamente divertido. Tal série, chamada "The Evil Dead" (também conhecida por aqui de "Uma Noite Alucinante" ou "A Morte do Demônio"), pode não ter sido um estouro de bilheteria, mas tornou-se um cult entre os admiradores do cinema de aventura e terror, graças à mistura desses gêneros com a comédia.

Hoje em dia, Sam Raimi é um diretor gabaritado e muitos duvidavam se ele ainda tinha dentro de si o "gás" para fazer novamente um filme desse tipo. Com este "Arraste-me Para o Inferno", ele prova que eles estavam errados. O filme narra a estranha história de Christine Brown (Alison Lohman), uma linda e adorável jovem que possui um bom emprego em um banco e um namorado boa-praça, o jovem professor Clay (Justin Long). Porém, suas ambições próprias e a pressão do mundo a fazem querer um pouco mais da vida.

Concorrendo a uma promoção em seu emprego e com seu chefe duvidando de sua capacidade de tomar "decisões difíceis", ela acaba negando a uma idosa senhora (Lorna Raver) uma extensão de crédito para a hipoteca de sua casa, fazendo-a perder o imóvel. Esse simples ato faz com que a vida de Christine vire do avesso, já que a idosa é uma poderosa feiticeira cigana. Ela lhe joga a terrível maldição da Lâmia que, após atormentá-la por três dias, irá arrastá-la para o inferno. Contando com a ajuda do vidente Rham Jas (Dileep Rao), a jovem terá de correr contra o tempo para salvar sua vida… e sua alma.

O inventivo roteiro escrito por Raimi e seu irmão Ivan se mostra mais interessante ainda por encaixar dentro da história uma parábola da atual crise econômica que assola os EUA. Não é só o óbvio de colocar o banco tentando tirar o imóvel da velha cigana ou o desespero crescente de Christine (que chega a vender seus pertences para tentar se salvar), mas coisas mais sutis, como Rham Jas se animando com o cartão de crédito de Clay ou o uso de um grampeador – um item clássico da burocracia – como uma arma durante uma surpreendente luta.

No entanto, o filme não funcionaria se o elenco não entrasse na brincadeira. Alison é a peça-chave aqui. Sem jamais ser mostrada como uma heroína de ação, sua Christine é uma pessoa comum, com defeitos e qualidades, que toma uma decisão ruim e vê sua vida indo cada vez mais pelo ralo por conta disso. A atriz se mostra uma ótima "rainha do grito", mas com conteúdo humano, não sendo só um mero saco de pancadas bonitinho para o filme, mas a alma deste.

Reparem só sua expressão nas cenas onde ela se entope de sorvete após diversas frustrações. É nesses momentos que sabemos que estamos vendo uma pessoa de verdade, não o modelo estereotipado de protagonistas de filmes de "terror" que Hollywood tem nos acostumado, mostrando o diferencial que faz um roteiro bem escrito trabalhando em conjunto com uma atriz talentosa. Os filmes de Raimi se destacam por seus protagonistas tridimensionais, com este não sendo exceção.

O longa deixa bem claro quem é o foco, mas não significa que os coadjuvantes não tem destaque. Justin Long ganha pouco tempo de cena como o cético namorado de Christine, Clay. O ator se mostra bem à vontade quando aparece, tendo uma ótima química com Lohman e seu personagem até que ganha algum desenvolvimento no trecho final do filme. O desconhecido Dileep Rao faz um bom trabalho como o vidente Rham Jas, sabendo seu papel e jamais tentando bancar o estereótipo hindu, o que seria desastroso para o filme.

No entanto, são as participações rápidas da veteraníssima Lorna Raver e da sempre ótima Adriana Barraza que mais chama a atenção no elenco secundário. A primeira faz um assustador trabalho como a Sra. Ganush, a cigana que amaldiçoa Christine. Intimidadora e um tanto nojenta, ela traz para a tela a imagem da bruxa má, mas com uma motivação bastante forte.

Já Barraza aparece pouco, mas muito bem, como a vidente Shaun San Dena, uma poderosa psíquica que já batalhou com a lâmia e fracassou uma vez, tendo uma nova chance de ganhar do demônio com Christine. Carismática e exalando vitalidade, é difícil não respeitar a personagem desde a primeira vez que a vemos. O filme ainda conta com uma participação bem rápida do bom ator David Paymer como o chefe de Christine, em uma quase ponta.

Sam Raimi ainda se mostra – novamente – um prodígio na direção. Realizando um trabalho de câmera fenomenal, seus planos são precisos e criativos, com destaque para o prólogo do filme, a cena da primeira "assombração" de Christine pela lâmia e na já citada sequência da "briga" – que irá surpreender muita gente -, a qual ele prepara o clima colocando frente-a-frente dois carros, quase que como em um duelo de faroeste (os fãs do cineasta irão reconhecer seu Chevette amarelo, presente em todos os seus filmes). Louve-se, então, sua colaboração com o diretor de fotografia Peter Deming, especialista em criar climas sombrios na tela e contrastá-los com mais bucólicos.

Raimi compreende que os sustos não vêm de efeitos digitais bem realizados, mas de climas bem estabelecidos de tensão, algo no que ele é mestre, com a computação gráfica sendo apenas mais uma ferramenta, não o astro, mostrando isso principalmente por sua predileção por efeitos práticos (que, aliás, são bem melhores para esse tipo de produção).

O diretor brinca com o público, em uma tática de "machucar e depois soprar", sabendo intercalar cenas realmente assustadoras com outras mais "gore" e engraçadas, trabalhando bem em conjunto com o editor Bob Murawski, seu colaborador de longa data. Nesse sentido, seu longa é como uma boa viagem em um trem fantasma, com sustos e diversão sendo sempre garantidos – embora os fãs do diretor já consigam adivinhar o final da história logo no começo do clímax, final este que encontra eco no primeiro "A Morte do Demônio", em uma pequena auto-referência do cineasta. Recomendado!

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

Compartilhe

Saiba mais sobre