Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Garota Ideal, A

Há um antigo ditado que diz que é necessário um povoado inteiro para criar uma pessoa. E o que é necessário para dar vida a uma boneca? "A Garota Ideal" mostra o estranho conto de uma cidadezinha pacífica do norte dos EUA que acaba por acolher uma nova moradora em sua cidade, a plastificada e inanimada Bianca.

O protagonista desta história é Lars (Ryan Gosling), um rapaz patologicamente tímido que vive na garagem de seu lar de infância, o qual ele cedeu para seu irmão Gus (Paul Schneider) e a esposa deste, Karin (Emily Mortimer). Os dois sempre tentam fazer com que Lars saia de seu mundinho e interaja mais com as pessoas, algo que não acontece nem mesmo quando a sua nova colega de trabalho, Margo (Kelli Garner), se mostra claramente interessada nele.

Mesmo assim, Lars possui uma carência desesperada por calor humano em sua vida e eis que, certo dia, ele é apresentado por um amigo a um site que cria bonecas em tamanho real e "anatomicamente corretas". Seis semanas depois, eis que surge Bianca na vida daquele tímido ser humano. Tratando a boneca como se fosse uma pessoa de verdade, o protagonista interage com ela normalmente, totalmente desligado do fato de que se trata de um mero pedaço de plástico, algo que convence seus familiares de que ele enlouqueceu.

Sob a orientação da médica e psicóloga local (Patricia Clarkson), a família e os amigos de Lars começam a tratar Bianca como se fosse uma pessoa de verdade, algo que acaba contagiando a cidade toda e repercute na vida de todos os habitantes locais. Enquanto isso, nós acompanhamos o relacionamento entre Lars e Bianca, bem como a evolução de seu estado psicológico.

O roteiro de Nancy Oliver, contando com uma premissa que, à primeira vista, pode parecer absurda e cômica, é tratado com uma sensibilidade ímpar pelo diretor Craig Gillespie e por todos os envolvidos no projeto. Há um respeito à condição única de Lars e ao seu relacionamento com Bianca que acaba fazendo com que o público passe a compreender os motivos que levaram o protagonista a cair nessa ilusão. Mais que isso, o casal principal acaba mais "real" conforme os conhecemos, algo inimaginável quando do primeiro vislumbre que temos de Bianca.

Muito deste efeito vem do trabalho brilhante de Ryan Gosling como Lars. Este jovem ator mostra ter um alcance tremendo após viver tipos completamente diferentes entre si em projetos como "Diários de Uma Paixão", "A Passagem" e o thriller criminal "Um Crime de Mestre", apresenta aqui a sua performace mais complexa ao dar à Lars tiques e cacoetes que colocam o personagem não como uma caricatura, mas como um indivíduo que, em meio a sua solidão, teve de recorrer a uma saída psicológica pouco convencional para ter um relacionamento com alguém.

Assim, jamais encaramos Lars como uma mera caricatura, mas como um ser tridimensional e, a partir da ligação dele com Bianca, nós passamos a nos importar com ela, seus sentimentos e anseios, todos eles comunicados por seu "namorado". Deste modo, não estranhamos quando toda aquela cidadezinha passa a tratar Bianca como um ser humano, afinal nós mesmos passamos a enxergá-la com um olhar diferente a medida com que nos importamos com o protagonista.

Além de Lars, conhecemos também um pouco dos sentimentos de sua família. A carinhosa Karin é vivida pela meiga e bela Emily Mortimer, que mostra sua personagem como uma mulher cujos instintos maternais estão a aflorar e que vê o sofrimento de seu cunhado com olhos mais objetivos e sensíveis, compreendendo sua solidão melhor do que ele mesmo. Já Gus é interpretado por Paul Schneider, que vive seu personagem com um tom de ressentimento e arrependimento em sua voz quando se trata de seu irmão, já que acredita ser parcialmente responsável pelo estado deste.

Gosling, Mortimer e Schneider possuem uma ótima química, sendo bastante agradável ver aquela estrutura familiar em cena, sendo palpável para o público o afeto que existe ali, bem como reconhecer os problemas daquela família, que já tinha passado por sua dose de problemas e tragédias que tanto influenciaram a condição de Lars.

Em uma participação menor, mas não menos importante, temos Patricia Clarkson como a Doutora Dagmar, a responsável por orientar os personagens nesta desventura estranha. Clarkson assume, de modo acertado, um tom mais experiente e sereno ao viver a boa doutora, em mais um bom trabalho em seu currículo. Já os demais coadjuvantes conseguem brilhar sem roubar espaço de ninguém, com todos os habitantes daquela cidadezinha tendo seu momento ao sol.

É no mínimo desapontador que, logo após comandar este ótimo longa, o cineasta Craig Gillespie tenha comandado o horrendo e escatológico "Em Pé de Guerra". Aqui, o diretor deixa a história ganhar a cena, jamais forçando situações "engraçadinhas" envolvendo Lars e Bianca. Há sim muito humor no filme, mas sem jamais denegrir os personagens ou aparecendo em situações forçadas.

Trabalhando com poucos recursos e aproveitando a paisagem gélida das locações para fazer um paralelo com a solidão de Lars, Gillespie mostra que compreendeu o espírito da trama, afirmando, de maneira despretensiosa, que as mais estranhas conexões emocionais que fazemos podem ser a chave para os sentimentos mais importantes que venhamos a expressar.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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