Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 20 de junho de 2009

Duplicidade

É difícil apontar o que há de melhor em “Duplicidade”, já que praticamente tudo no filme é digno de elogios. Vão desde as excelentes performances do elenco e a frenética trilha sonora de James Newton Howard até a eletrizante edição de John Gilroy e a esperta direção de seu irmão, Tony Gilroy. Mas é o roteiro do último Gilroy citado que faz de “Duplicidade” uma experiência cinematográfica diferenciada.

Tony Gilroy, aliás, é um nome a ser observado pelos cinéfilos de plantão. Se o início de sua carreira inclui peças desprezíveis como o roteiro de “Armageddon”, os últimos sete anos o firmaram como uma das mais importantes promessas da indústria de filmes do Estados Unidos. O começo dessa ascensão veio com a primeira parte da sensacional trilogia Bourne, “A Identidade Bourne”. Mesclando ação com uma trama inteligente de espionagem, a franquia recebeu o merecido respeito do público e dos críticos de cinema, principalmente devido aos seus espetaculares episódios subsequentes: “A Supremacia Bourne” (2004) e “O Ultimato Bourne” (2007). No entanto, como é de praxe em Hollywood (vide Martin Scorsese), o reconhecimento pelo trabalho na área só aconteceu por uma produção superestimada. Com “Conduta de Risco” (2008), Gilroy recebeu indicações ao Oscar em duas categorias: direção (logo em sua estreia) e roteiro original. Já em “Duplicidade”, ele volta a tratar do tema da espionagem, confirma ser um craque com as palavras, além de se revelar um cineasta bastante eficiente.

No centro da trama, temos Claire Stenwick (Julia Roberts) e Ray Koval (Clive Owen), agentes secretos da CIA e da MI-6, respectivamente, que acabam se conhecendo durante uma festa organizada na sede da embaixada americana em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, no dia 4 de julho de 2003. O primeiro encontro conturbado já revela o que está por vir durante esse relacionamento secreto bastante pautado em confiança. Com o propósito de tentar conciliar a relação entre os dois e dar um golpe milionário em alguma grande empresa, Claire e Ray deixam o mundo da espionagem governamental e partem para o mundo da inteligência corporativa juntos.

Os dois acabam, depois de muita procura, achando o emprego perfeito, em que poderão viver na mesma cidade, Nova York, e trabalhar na mesma empresa, mas logicamente em funções distintas. Se Claire é uma agente infiltrada na companhia concorrente, a Burkett & Randle, Ray é um recém-chegado espião que busca a confiança dos chefões. No entanto, os dois possuem um objetivo em comum: descobrir a fórmula do misterioso produto revolucionário que a empresa rival irá lançar no mercado nos próximos meses. Para executarem os planos particulares e empregatícios, Claire e Ray terão de enfrentar diversos obstáculos, como a manutenção do disfarce de agentes duplos e a reclusão temporária de todo o amor e desejo que sentem um pelo outro.

O grande diferencial de “Duplicidade” infelizmente não pode ser notado através de sua sinopse, pois é difícil descrever o texto cômico que Tony Gilroy produziu. Mesmo se tratando de uma película policial, o que exige certo suspense, a fita mescla sequências investigativas com cenas bastante engraçadas, e às vezes as confunde. Grande parte desse humor tem origem nos diálogos hilários entre os personagens, principalmente entre o casal principal. A repetição da sequência em que os dois se reconhecem depois do desentendimento em Dubai é um dos maiores desses acertos. Além disso, a comicidade é especial, pois dá ao filme um charme cada vez mais raro de ser ver no cinema.

A história também é construída por Gilroy de maneira inteligente, afinal não bastava criar uma trama engraçada sem haver um conteúdo sedutor. A espionagem empresarial, como não poderia ser diferente, é incrustada de participantes dúbios e ações perigosas. Cada fala ou ato parece ter sido pensado de forma demasiada, pois não há “furo” algum no roteiro. E como não poderia faltar em um argumento de suspense, temos diversas reviravoltas, mas dessa vez o universo em que o filme se enquadra permite que elas aconteçam sem parecerem forçadas. Apenas a última delas é previsível, o que é rapidamente compensado pela fantástica derradeira tomada do filme, em que o casal protagonista avalia toda a trama em que estiveram envolvidos nos últimos meses.

A direção de Tony Gilroy conta com as essenciais parcerias da edição e da trilha sonora. O cineasta sabe como utilizar estes dois aspectos a seu favor para imprimir um ritmo invejável à “Duplicidade”. A montagem de John Gilroy mistura uma linha de tempo linear com vários flashbacks dos esporádicos encontros entre Claire e Ray ao longo dos anos ou meses que anteciparam a história principal, os quais são capitais para que se entenda os mistérios da fita. Já a composição de James Newton Howard é um espetáculo à parte. Misturando batidas de diversos instrumentos musicais, mas sempre em um ritmo acelerado, a trilha se encaixa tão perfeitamente na edição do filme que dá a impressão de ter sido feita antes das filmagens. Ela também serve para dar aquele charme já citado que a produção exala.

Enquanto isso, as técnicas eficientes de câmera de Tony Gilroy são motivadas pelo ritmo que a narrativa possui em um determinado momento, ou seja, se estamos em uma sequência reveladora, ele é acelerado – com rápidos movimentos de câmera – mas se não, o diretor deixa com os atores a função de interpretar os inspirados diálogos de forma cadenciada. Entretanto, é uma cena em particular que chama a atenção para a direção de Gilroy. O seguimento em que os dois donos das empresas concorrentes, Dick Garsik (Paul Giamatti) e Howard Tully (Tom Wilkinson), se enfrentam em uma batalha corporal ridícula em câmera lenta, enquanto são observados pelos seus assessores, é nada menos do que genial.

Com frases perfeitas a serem ditas e contando com uma parte técnica não menos competente, os atores não poderiam decepcionar. E todos, sem exceção, estão estupendos. Julia Roberts e Clive Owen comandam o filme com uma química evidente e um especial talento para comédia. O casal voltou a contracenar depois do estrondoso sucesso de “Closer – Perto Demais”. Se esse filme representou a guinada ao sucesso de Owen, Roberts não emplacava nenhuma boa produção desde então. Felizmente, a atriz mais charmosa de Hollywood está de volta.

Centrado praticamente todo no casal principal, sobra pouco espaço para os outros atores se sobressaírem, mas mesmo assim eles conseguem, com especial destaque para Paul Giamatti. Interpretando o chefão Dick Garsik, o ator dá ao personagem uma personalidade hilária e egocêntrica, como ele mesmo descreve no seu último discurso ao público, quando vai anunciar o novo produto da empresa. Já Tom Wilkinson repete a dobradinha com Tony Gilroy, depois de “Conduta de Risco”, dessa vez bem mais contido e, nem por isso, menos eficiente. Além deles, a produção tem participações especiais excelentes, como a de Carrie Preston, que faz uma funcionária da Burkett & Randle, que acaba sendo seduzida por Ray durante a execução de um plano importantíssimo.

Mesclando ação, mistério e muita comédia, “Duplicidade” é daqueles filmes que não promovem nenhum tipo de reflexão, mas são prazeres reclusos de muitos espectadores. Mais uma vez Tony Gilroy acrescenta grandes doses de inteligência a uma produção de formato comercial comum, assim como fez na trilogia “Bourne”, mas agora ele nos presenteia com uma película leve e deliciosa.

Darlano Didimo
@rapadura

Compartilhe

Saiba mais sobre