Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 08 de julho de 2009

Feliz Natal

Como ator, é assustador o alcance que Selton Mello possui, conseguindo encantar plateias em longas completamente diferentes entre si como "O Cheiro do Ralo", "O Alto da Compadecida" e "Meu Nome Não é Johnny". Este “Feliz Natal” marca sua estreia na cadeira de direção, em um exercício tecnicamente bastante apurado.

O roteiro da fita, escrito pelo próprio Mello em parceria com Marcelo Vindicato, narra a história de uma família carioca extremamente problemática, se reunindo em uma festa de Natal. Caio (Leonardo Medeiros), que cuida de um ferro-velho no interior, possui um passado trágico, tendo se envolvido em um incidente com resultados fatais quando estava sob influência de drogas e só agora começa a tentar se recuperar de seus traumas.

Ele recebe ajuda de seu irmão, Téo (Paulo Guarnieri), um homem abastado, mas cuja tendência a tentar agradar a todos o torna absurdamente infeliz. Os pais deles, Mércia e Miguel (Darlene Glória e Lúcio Mauro), divorciados há tempos, são um caso a parte. Mércia vive em outro mundo, graças a constantes misturas de tranquilizantes e bebidas alcoólicas, sendo praticamente incapaz de um pensamento coerente. Miguel está se "relacionando" com uma ninfeta indígena (com a ajuda de certas pílulas azuis) e sente um ressentimento imenso quanto a Caio e seu passado, ao ponto de não conseguir sequer olhar para o filho.

Orbitando isso tudo, temos a esposa de Téo, Fabi (Graziela Moretto), que tenta trazer um pouco de paz e tranquilidade a este ambiente caótico junto dos filhos, dentre os quais se destaca o pequeno Bruno (Fabrício Reis), o único responsável por alguma luz no filme. Além disso, aparecem os amigos de Caio de seus tempos de bebedeira. Todas essas pessoas terão suas vidas alteradas durante esses "dias de festa", os quais serão marcados por lembranças de tragédias passadas e novos acontecimentos potencialmente desastrosos.

Antes de tudo, não há espaço para a felicidade no mundo criado pelo texto de Mello e Vindicato. Durante o tempo que acompanhamos a família de Caio, não conseguimos notar nada que se assemelhe a tempos felizes ou mesmo lembranças de felicidade. É como se aquelas pessoas vivessem em um buraco negro de alegria, do qual apenas as crianças escaparam e somente porque não vivenciaram tragédias ainda.

É interessante notar que as poucas referências a risos e gargalhadas feitas pelos adultos venham acompanhadas de alucinógenos ou de menções a medicamentos e substâncias entorpecentes, como se o filme quisesse dizer que aquelas pessoas só conseguem alcançar a felicidade ou o prazer de maneira artificial.

Tantos acontecimentos infelizes que surgem em cena acabam por cansar o espectador, que só encontra alento na inocência e na curiosidade infantil do pequeno Bruno, cujas cenas são um bálsamo para a audiência. A outra exceção, acreditem, vem na figura de um coveiro, interpretado pelo veterano Emiliano Queiroz, que encarna sua profissão com uma (pequena) dose de humor.

No entanto, se acreditamos realmente no sofrimento daquele grupo peculiar de indivíduos é por conta do incrível elenco que Selton Mello reuniu para este filme, todos homogeneamente impecáveis. O cast é liderado por Leonardo Medeiros como o sofrido e traumatizado Caio, que teve a vida destruída por sua irresponsabilidade e vício. Ele é o centro do filme e o grande catalisador dos fatos que ocorrem durante a trama. Desde que vi Medeiros nos ótimos "Não Por Acaso" e "Lavoura Arcaica" (no qual contracenou com Selton Mello), tenho um especial interesse em seu trabalho.

Realizando uma composição de personagem lindíssima, o ator trabalha muito bem com o sofrimento e o arrependimento que Caio carrega como uma cruz e vemos Medeiros expondo esta "ferida" do personagem sempre que possível, mas de maneira absolutamente natural. No próprio rosto dele, vemos a expressão de um homem cansado de sofrer, mas que mal consegue olhar para quem era antigamente e que também não sabe como construir uma nova vida. Saber colocar isso apenas com o olhar é algo difícil, mas que Medeiros conseguiu realizar.

Paulo Guarnieri transforma seu Téo em uma figura digna de pena, retratando-o como um homem que parece ter o peso do mundo nas costas. Conflitado entre o desejo de ajudar o irmão e sua vontade de agradar ao pai, Téo ainda tem de encarar a insanidade da mãe em eterno conflito com sua esposa, algo que está colocando seu casamento em crise. Graziela Moretto, aliás, tem a difícil tarefa de tentar ser a proverbial sã no asilo, com sua Fabi sendo uma mulher que parece lutar para se manter inteira. A atriz, aliás, foi alvo de certa polêmica graças a sua cena de nudez. No entanto, esta é incrivelmente importante para a composição da personagem.

A performace de Darlene Glória como a ébria Mércia traz diversos sentimentos ao espectador. Em um primeiro impacto, achamos até engraçada a embriaguez dela para, aos poucos, notar que tal estado não é transitório e que se trata de uma mulher que é apenas a sombra de um ser humano, incapaz de manter a própria dignidade. Glória choca com sua personagem e se mostra digna de altos elogios por isso, já que Mércia poderia se transformar em uma mera bêbada e não na figura trágica que é.

O desempenho de Lúcio Mauro como Miguel é um pouco prejudicado pela falta de aprofundamento no personagem. Notamos o profundo ressentimento deste para com Caio e sabemos que o casamento dele com Mércia não acabou nos melhores termos, mas pouco sabemos dos pormenores e motivos destes dois fatos. O ator é extremamente carismático e competente, mas o roteiro simplesmente não o ajuda. Emiliano Queiroz, mesmo aparecendo por poucos minutos, consegue ser marcante como o Coveiro, porque acabamos por conhecer e simpatizar com seu personagem em sua rápida aparição, até mesmo por este ser um dos menos obscuros a aparecer em cena.

Tecnicamente, Selton Mello começa na direção com o pé direito. Investindo em um visual sombrio, que combina perfeitamente com a temática do longa,o jovem diretor se mostra absolutamente a vontade no comando de uma fita. Mesmo lançando mão de alguns planos simbólicos – principalmente na maravilhosa sequência-clímax -, Mello prefere se utilizar de planos mais "pé-no-chão", como se algum terceiro invisível estivesse com uma filmadora de mão registrando aqueles momentos, quase sempre com planos extremamente fechados, em um clima quase claustrofóbico.

Nesse sentido, deve-se louvar a maravilhosa – e também sombria – direção de fotografia realizada por Lula Carvalho, responsável por vários ótimos trabalhos de cinematografia do cinema brasileiro recente, dentre eles "Tropa de Elite". É interessante como a edição do longa colabora para o clima de ambiente fechado da trama, com a montagem tendo sido realizada pelo próprio Selton Mello em colaboração com Marília Moraes. A trilha sonora, composta por Plínio Profeta, completa a aura melancólica do filme perfeitamente.

Por outro lado, “Feliz Natal” acaba seriamente prejudicado por sua conclusão. Já bastante triste, a fita perde a chance de terminar após um belíssimo clímax, no qual os principais conflitos dos personagens pareciam se resolver, para colocar uma nova tragédia na trajetória daquela família, de modo completamente arbitrário e artificial, quase tirando o peso da magnífica sequência que veio antes.

Mesmo assim, "Feliz Natal" é um início promissor para Selton Mello na carreira de diretor. Resta ver se ele provará ser tão versátil como cineasta quanto como ator. De qualquer modo, o cinema nacional está vendo o surgimento de uma carreira que deverá ser acompanhada com bastante interesse.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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