Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 26 de março de 2009

Buffalo 66

Vicente Gallo conta a história de Billy Brown, jovem azarado que busca redenção em sua vida conturbada. Com esta obra, o diretor realizou um dos filmes mais importantes do cinema independente americano e inventou moda.

O filme "Buffalo '66" narra a história de Billy Brown, um típico americano de classe média que, após se meter em uma dívida de jogo, aceita ser preso por um crime que não cometeu para assim pagar sua conta. Cinco anos depois, quando sai da cadeia, resolve ir visitar seus pais, que não ficaram sabendo que ele esteve preso, pois seu amigo Tonto enviou cartões de natal, aniversário entre outros. Mas Billy não poderia aparecer de mãos abanando depois de tantos anos e, por isso, no caminho da prisão até a casa dos pais, ele sequestra Layla, uma dançarina de balé que cruza seu caminho. Ela será obrigada a fingir que é sua esposa. Mas isso é apenas a primeira parte do plano de Billy, que pretende matar Scott Norwood, jogador de futebol americano dos Buffalo Bills, que perdera o gol crucial para vitória do time no Super Bowl XXV contra os New York Giants em 1991. A derrota, que Billy acredita ter sido comprada, resultou em todo seu inferno cósmico e por isso ele quer vingança.

Com forte cunho semi-autobiográfico, Vincent Gallo realizou este que é um dos grandes marcos do cinema independente americano. Interpretando o personagem principal, Gallo apresenta um personagem imensamente complexo, perturbado e incrivelmente hilário, pois sua raiva e brutalidade são um contra senso a todo o absurdo de suas atitudes desesperadas, criando uma tragédia cômica com toques de humor negro. Igualmente complexa é a personagem de Christina Ricci, que claramente não interpretaria uma dançarina de balé qualquer. Assim que Layla começa a estranhamente se mostrar passiva a toda a agressividade de Billy, percebemos que existe algo de diferente com ela.

Quando Layla realmente encarna seu papel, percebemos que ela é mais louca que o próprio Billy, e isso é o mais fantástico de sua personagem, pois, enquanto Gallo explora profundamente seu personagem masculino, Layla é simplesmente uma incógnita do início ao fim, e é claro, acabamos por nos afeiçoar por ela. Seus problemas poderiam ser muitos, como falta de amigos, família ou diversos tipos de perversidades que levaram a seu comportamento errático, porém no final, nada disso importa, pois mesmo sem sabermos qual é seu background, nós a conhecemos psicologicamente.

O time de coadjuvantes é excelente, com Anjélica Huston como a hilária mãe de Billy, Jan Brown. Ela é torcedora fanática dos Buffalo Bills e se entristece profundamente ao lembrar que no dia em que deu a luz a seu único filho, seu time ganhou e ela não pôde assistir. Jan parece gostar de Billy, mas seu defeito é não prestar atenção em nada que diga respeito a ele, como por exemplo se lembrar que Billy é alérgico a chocolate e quase morreu disso quando era criança.

No papel do pai desta desestruturada família, frustrado cantor Jimmy Brown, temos o excepcional Ben Gazzara. Jimmy é um pai frio e distante e tem uma péssima relação com Billy, pois é bruto e implicante com o filho, sendo dos dois os diálogos mais tensos do filme. Além da problemática família, o longa conta também com a participação de Kevin Corrigan como o avoado amigo “Tonto”; Rosana Arquette, que faz uma pequena participação como a menina dos sonhos de Billy; Wendy Balsam e, em seus primeiros passos rumo a ressurreição, Mikey Rourque interpretando o credor implacável The Bookie.

Todo filmado com um raro filme 35 mm reversal (que tem velocidade variada, se diferenciando assim na nitidez e grãos da imagem), o filme traz um visual realmente diferenciado, lembrando, em certos momentos, a fotografia dos filmes do mestre Hitchcock. Para os flashbacks, Gallo usou uma câmera 16 mm, alcançando também um ótimo resultado. Responsável por quase toda parte técnica e também edição do filme, o diretor optou por soluções que de tão simples se tornam geniais, como o box de memórias, que é simplesmente o frame cru e puro, aparecendo de forma seca sobre a tela e aumentado até tomar conta de tudo.

Em vários momentos é utilizado este artifício, que realmente se mostra muito criativo, apesar de sua simplicidade. Um bom exemplo dessa utilização é o momento em que Billy sai da prisão e várias dessas “caixas” aparecem preenchendo a tela, mas também interagindo com o fundo, demonstrando também um ótimo trabalho de posicionamento de cena.

A construção das cenas é outro fator muito importante para Gallo e ele o faz com perfeição. Optando sempre por uma centralização simétrica, todas as cenas se tornam um quadro de arte contemporânea pop. Com momentos não lineares – como a música cantada pelo pai ou o sapateado na pista de boliche de Layla -, tudo está sempre muito bem enquadrado e centralizado – sem falar na iluminação que dá um show a parte -, nos transportando para o “surreal” das situações mais fantasiosas. A cena do encontro com os pais de Billy é simplesmente fantástica por sua tridimensionalidade.

Utilizando do ponto de vista de cada personagem, Gallo construiu um cenário tão completo que por vezes pode até confundir os mais desavisados. O mesmo é feito nas cenas que Billy explica seu plano para Layla no carro, onde os diversos ângulos apresentam o carro em sua totalidade. Estes elementos são os fatores marcantes deste cinema dito “independente”, o uso dos ângulos inusitados é realmente a arma mais letal do cinema de baixo orçamento, até mesmo um efeito “Matrix” caseiro é produzido, onde um travelling, com certeza feito sem trilhos, gira em torno do rosto do personagem atingido por um tiro, e um sangue fabricado por algum produto jorra de sua testa. Realmente incrível, uma cena para rebobinar e assistir de novo e assim tentar descobrir o que rolou ali.

O personagem de Gallo é a autodestruição em pessoa, mas seu principal problema é com certeza o medo. Ele tem medo do contato físico, de dizer a verdade a seus pais, mesmo que a opinião deles não valha nada, e de tratar bem a nova estranha que assustadoramente gosta dele por algum motivo desconhecido. O final pode parecer pouco ousado, ou mesmo um tiro certeiro, onde tamanha apelação não deixe chances para o erro, mas penso que para um personagem disfuncional como o de Billy Brown, um happy end é simplesmente perfeito.

Ronaldo D`Arcadia
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