Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 27 de março de 2009

Jornada nas Estrelas II – A Ira de Khan

Em muitas maneiras, pode-se dizer que a história de "Jornada nas Estrelas" nos cinemas começou em sua segunda empreitada na telona. Com um visual e ritmo completamente diferentes daqueles adotados em sua estreia na sétima arte, a franquia começa com este "Jornada nas Estrelas II - A Ira de Khan" um arco narrativo que se prolongaria pelos próximos dois filmes da saga, no que é conhecido como a "trilogia Gênesis".

Apesar de ter sido concebido na década de oitenta e lançado nos cinemas em 1982, os primórdios de “Jornada nas Estrelas II – A Ira de Khan” datam ainda da primeira temporada do seriado clássico, mais precisamente de 16 de fevereiro de 1967, quando foi ao ar o episódio “Semente do Espaço”. Nele, a tripulação da Enterprise, capitaneada pelo Capitão Kirk (William Shatner), encontra em pleno século 23 uma nave terrestre lançada para o espaço há mais de duzentos anos, contendo um grupo de antigos tiranos super-humanos genéticos liderados por Khan Noonien Singh (Ricardo Montalban), um brilhante tirano do passado congelado criogenicamente.

Escapando da tentativa de roubo de sua nave, Kirk exila Khan e seus homens no selvagem planeta de Seti Alfa 5, confiante que seu adversário conseguiria tornar aquele local um mundo desenvolvido em pouco tempo. Vários anos depois, Kirk agora é um almirante, enfadado com sua posição burocrática, enquanto o seu amigo Sr. Spock (Leonard Nimoy) foi promovido a capitão da Enterprise e treina uma nova leva de tripulantes, dentre eles a tenente vulcana Saavik (Kirstie Alley). Um dos projetos supervisionados pelo almirante é Gênesis, um mecanismo desenvolvido pela Dra. Carol Marcus (Bibi Besch) e por seu filho David (Merritt Butrick), capaz de dotar qualquer planetóide de capacidade de sustentação de vida.

Em busca de um mundo devastado e inabitado para testar esse miraculoso aparato, uma nave da Federação acaba por encontrar Khan e seus homens, que ficaram presos neste mundo que fora devastado por um cataclisma natural. Assim, Kirk e os veteranos oficiais da Enterprise, contando com uma tripulação novata e uma nave longe de seu auge, terão de resgatar Gênesis e os cientistas responsáveis pelo mecanismo das garras de um vingativo Khan.

Não seria exagero dizer que este segundo longa da tripulação clássica da Enterprise foi o molde para todos os exemplares cinematográficos da franquia, pelo menos no que concerne a seu visual e ritmo, que fogem totalmente àqueles mostrados por Robert Wise em “Jornada nas Estrelas – O Filme”, que contou com uma narrativa morosa e os infames uniformes que mais lembravam pijamas. A partir do segundo filme, o figurino dos representantes da Federação passou a lembrar mais o de membros da Marinha e as próprias batalhas espaciais passaram a remeter aos embates náuticos retratados nos cinemas.

Além disso, o roteiro de Jack B. Sowards e a direção de Nicholas Meyer acertam ao equilibrar as cenas de efeitos especiais e as tramas tão humanas daqueles personagens. Com efeitos bastante engenhosos para a época, o longa envelheceu muito bem, até por apostar em detalhadas maquetes para compor os combates entre as naves e não na nascente animação computadorizada, o que concede um peso e até uma maior realidade a tais cenas. Tecnicamente, o filme é quase perfeito, não fazendo feio nem mesmo nos dias de hoje.

No entanto, os melhores elementos da franquia – principalmente da série clássica – nunca foram seus efeitos especiais, mas a interação entre seus personagens. Meyer percebeu isso e manteve o foco do filme nestes, preservando uma das características-chave da franquia. O entrosamento natural entre o corajoso Kirk, o racional Spock e o passional Dr. Leonard “Magro” McCoy (DeForest Kelley) é perfeito e sempre repleto de deliciosos diálogos que evidenciam tais características, principalmente considerando que uma das cenas mais poderosas do filme evidencia a imortal amizade entre Kirk e seu colega meio-vulcano.

Sem contar que, ao ressuscitar um antigo antagonista que possui real chance de sobrepujar o antigo Capitão da Enterprise física e mentalmente, o longa conquista os fãs antigos e ganha pontos em dramaticidade, já que confronta Kirk com um adversário a sua altura. Mas, um mero roteiro com personagens bem escritos não são nada sem um elenco carismático. Neste sentido, apesar de não serem sempre dramaticamente perfeitos, os atores compensam com uma presença de cena extremamente magnética.

William Shatner pode ser um canastrão de primeira, mas é quase impossível dissociá-lo da persona de James T. Kirk, principalmente por conta de sua arrogância natural, algo que o torna perfeito para o papel e bem mais chocante para o público ao vê-lo tão fragilizado em determinado momento do filme. O mais interessante é que este é, dentro da série, o filme mais complicado emocionalmente falando para Kirk, pois ele tem de lidar com emoções bastante conflitantes dentre todo o filme. A despeito de seu bom trabalho no filme, a veia exagerada de Shatner ainda vem à tona na sua hoje clássica fala de humor involuntário “KHAAAAAAAAAAAAAAN!”.

Leonard Nimoy tem um trabalho um tanto mais complicado, dado o arco narrativo do Sr. Spock, eternamente lutando entre seu racional lado vulcano e sua metade mais humana, que acaba por se apresentar um pouco mais em uma tocante cena entre ele e Shatner, na qual a lendária amizade entre Kirk e Spock é reafirmada em um momento crucial. Tal sequência está entre uma das mais emocionais de toda a franquia e nela fica evidente a química entre os dois atores.

Já DeForest Kelley tem um papel mais de reação às situações e diálogos com seus companheiros, com poucas cenas solo, mas interagindo muito bem com seus companheiros de tela. Não é que McCoy seja jogado de lado em relação aos seus companheiros, mas é que ele atua, aqui mais do que nunca, como um contraponto para o racional Spock. No entanto, uma cena-chave no último ato da película já garante ao personagem um maior destaque no próximo longa.

Ricardo Montalban compõe um vilão absolutamente aterrador e memorável. Seu Khan consegue ser inteligente, intimidador, sedutor e até um pouco louco, tudo ao mesmo tempo. Ao contrário do inimigo praticamente sem fraquezas que Khan era na série de TV, agora o super-homem genético possui um grande calcanhar de Aquiles, que é a sua obsessão por Kirk, retratada magistralmente por Montalban.

Três novos personagens foram introduzidos na franquia pela fita: a Dra. Carol Marcus, David e a Tenente Saavik, vividos respectivamente por Bibi Besch, Merritt Butrick e Kirstie Alley. Embora os atores se saiam muito bem, com certo destaque para Butrick, eles acabam meio que roubando tempo de tela que poderia ser usado pelos demais oficiais da Enterprise, que são deixados de lado durante a aventura.

Assim, pouco vemos de figuras clássicas como a Comandante Uhura (Nichelle Nichols) e do Sr. Sulu (George Takei). No entanto, Walter Koenig e James Doohan, intérpretes de Chekov e do engenheiro Scotty, ainda conseguem um bom uso de seu tempo de tela, com os dois contando com cenas marcantes dentro da fita, inclusive com uma sequência bastante tensa envolvendo o primeiro e Khan.

“Jornada nas Estrelas II – A Ira de Khan” é uma ótima ficção de ação, sendo um longa efetivo e emocionante, além de embalado pela ótima trilha de James Horner. Contando com elementos que marcaram a franquia toda, como o famigerado teste da Kobayashi Maru (que deverá ser visto novamente no vindouro “Star Trek”), a fita pode ser apreciada sozinha, sem um acompanhamento da série anterior ou dos demais filmes, mas dá o pontapé inicial para o que é conhecido pelos fãs como a “trilogia Gênesis”. Sendo uma das melhores produções da saga, a película é recomendada tanto para trekkers quanto para não-iniciados.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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