Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Milk – A Voz da Igualdade

Um ícone da política e do movimento gay, Harvey Milk é cinebiografado pelos olhos atentos do diretor Gus Van Sant, que realiza um trabalho impecável. "Milk - A Voz da Igualdade" é sobre a luta pelos direitos, igualdade e felicidade de toda e qualquer pessoa, independente da opção sexual.

Filmes com temáticas gays são produzidos aos montes. Ao contrário do que muito falam e outros encaram, esses filmes não são mais polêmicos. Um cena de beijo entre dois homens ou duas mulheres tornou-se, até onde a palavra pode funcionar, comum. Contar a vida de gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais no cinema deixou de ser tabu para mostrar como o tema merece ser discutido e compreendido. Não que os preconceitos tenham cessado, já que ainda são muito presentes na sociedade dita conservadora, mas o sucesso de um filme, uma peça de teatro, um profissional, um amigo, um parente gay depende apenas da forma como é visto por quem está de fora, e às vezes de dentro.

O cineasta Gus Van Sant, homossexual assumido, tentou por muitos anos transformar a história de Harvey Milk em filme. Sua primeira tentativa foi frustrada, pois ele não sabia ao certo o recorte que merecia estar nas telonas. Foi quando Dustin Lance Black entregou nas mãos de Van Sant sua visão sobre a vida pessoal e carreira política de um dos homens que mais influenciou as causas gays no mundo. Van Sant logo poderia contar, ao seu modo peculiar, a história de quem também influenciou sua vida. "Milk – A Voz da Igualdade" não é um filme que protesta a sociedade atual, apesar de deixar traços claros para esta, muito menos um filme que levante um feito exclusivamente para o público gay. O longa é, acima de tudo, o reflexo do seu protagonista e sua vontade pela igualdade das pessoas, independente de sexo, idade, raça, tamanho de cabelo, habilidades artísticas, etc.

Em 1978, Harvey Milk foi assassinado. Isso não é um segredo nem da vida real nem do filme. Van Sant traz durante os primeiros minutos de duração Milk gravando fitas sobre sua trajetória na militância política para serem levadas a público, caso o protagonista venha a ser atingido fatalmente. O roteiro volta oito anos e mostra Milk (Sean Penn) chegando a São Francisco com o namorado Scott (James Franco), em uma cidade em que a polícia e os religiosos condenam as demonstrações homoafetivas. Logo, os dois montam uma loja de fotografia para pagar o aluguel. É lá que os gays que viviam em guetos começam a ter o espaço e o respeito de outros gays e onde Milk mostra-se um verdadeiro representante do local, chegando a ser "eleito" o Prefeito da rua. Milk e Scott são seguidos por amigos e conhecem novas pessoas com ideologias de liberdade e igualdade, nas quais o respeito deveria ser, mais do que nunca, a base das relações sociais.

Encantado pelo que poderia fazer no poder, Milk decide se envolver com a política. Em suas tentativas de se eleger Supervisor de São Francisco, cargo administrativo bastante concorrido e de influência, Milk aprende, a cada derrota, que não deve abandonar o barco e deixar de lutar pelo que acredita. Em uma sociedade onde políticos como Anita Bryant dizem amar os homossexuais, mas que por isso sabe que o melhor é puni-los, Milk aparece com a solução para que eles não sejam tratados como animais e parem de viver em guetos. Ao se eleger como Supervisor, Milk argumenta os absurdos da Lei e dos políticos "quadrados", chegando a desenvolver uma relação de competitividade com Dan White (Josh Brolin), que mais tarde o assassinaria. À medida que se envolve na política e defende o que acha de direito dos cidadãos, Milk vê sua vida sentimental ir por água abaixo. Scott o abandona, logo dando espaço para que o político conheça o jovem latino Jack (Diego Luna) e com ele desenvolva um relacionamento.

O roteiro é impecável. A narrativa contribui em tudo para o livre exercício do diretor Gus Van Sant em criar, certamente, o filme mais maduro de sua carreira. O roteirista pontua com clareza e eficiência os diversos obstáculos vividos não só pelo protagonista, mas pela sociedade moralista da época na qual ser gay ainda era considerado uma perversão. A história de Milk é interessantíssima e oferece desde humor refinado a conflitos dramáticos. Milk desafia o pudor e as regras. Ele traz à tona que questionar o homossexualismo tem a mesma proporção que questionar o heterossexualismo. Quando Milk se vê frente a uma Lei que proíbe professores gays nas escolas, além da revolta, ele decide criar uma Lei na qual qualquer dono de cachorro que não apanhe as fezes de seus animais seja multado. É um bom senso cujo humor é impagável e, ao mesmo tempo, constrói uma trama poderosíssima.

A película ganha mais impulso pela atuação magnífica de Sean Penn. Além da semelhança física, Penn investe nos trejeitos, no senso de humor de Milk e em sua fragilidade ao dar de frente a um microfone. Mas basta gritar "Oi, eu sou Harvey Milk e estou aqui para recrutá-los!" que a aceitação das pessoas faz com que a fragilidade do personagem vire a força motora contra as diferenças. Em um dos mais belos momentos do longa, Milk lembra que todos os seres humanos foram criados iguais e ninguém ou nenhuma lei poderá mudar isso. A indicação de Penn ao Oscar foi merecida e, por mais que ele não seja o favorito deste ano, ele seria o melhor dono para a estatueta.

Ao lado de Penn, o elenco constrói, desde os personagens mais apagados aos mais ativos, a narrativa com o empenho necessário para transformar o longa em uma jóia rara. James Franco, que não costuma ter nada mais que uma atuação normal em seus projetos, cresce ao lado da química que tem com Penn. Diego Luna e Emile Hirsch, por mais que sejam caricatos, se demonstram dois dos grandes atores da nova geração. O "vilão" interpretado por Josh Brolin tem a complexidade de uma caixa de fósforos, mas é isso que Dan White é: fácil, porém intrigante. A alienação de Dan se mistura com um provável desentendimento íntimo, que o próprio Milk sugere durante a película, mas facilitando que a personalidade de Dan e a construção da sua família feliz funcionem como paradoxo.

Gus Van Sant dá sua contribuição principalmente por deixar de lado a subjetividade, algumas vezes inadequada, de filmes como "Paranoid Park", e volta ao humanismo visto em "Elefante". "Milk – A Voz da Igualdade" não é só um filme para gays, e sim para uma sociedade que tem preconceito contra tudo: branco, negro, índio, mulato, magro, gordo, deficientes físicos, gays, e uma enorme lista que não caberia aqui. Van Sant cria alternativas para engrandecer a trama. Ele insere fotos e vídeos de arquivo, simula essas imagens, enche a tela com cartazes revolucionários e em momento algum pretende moldar a opinião do espectador. Por mais que Milk defenda que para a sociedade aceitar o homossexual é preciso que cada um "saia do armário", isso não deve ser lido pelo público como um ensinamento, e sim como um meio de protestar aquilo que faz mal a uma "minoria".

Acompanhado de uma trilha sonora delicada e intensa, assim como sua fotografia, o ato final do filme se corresponde diretamente com a admiração de Milk pela tragédia "Tosca", que embala um dos momentos mais significativos do longa, bem como "Somewhere Over The Rainbow", que, assim como aconteceu em "Austrália", de Baz Luhrmann, mostra a esperança por algo novo, pela aceitação, pela vida. Como diria o próprio Harvey Milk, sem esperança não há motivos para viver. Não há ameaça que valha a pena temer quando acredita-se em algo. Muito mais do que levantar uma ideologia, Harvey Milk e "Milk – A Voz da Igualdade" são verdadeiros exemplos de consciência humana.

Diego Benevides
@DiegoBenevides

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