Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Na Mira do Chefe

Cínico, agridoce e com atuações e personagens extremamente marcantes, "Na Mira do Chefe" faz jus ao reconhecimento que vem recebendo nesta temporada de premiações.

Mais uma vez, as distribuidoras nacionais fazem o favor de colocar um título imbecil para um filme brilhante. Não se deixe enganar pela primeira impressão horrenda que "Na Mira do Chefe" deixa quando se vê o pôster desta fita. Na verdade, o longa é um dos mais brilhantes de 2008, contendo um roteiro ágil, personagens cativantes e uma trama com um incrível sabor agridoce, temperada com atuações excelentes.

Devo admitir que esta fita foi uma tremenda surpresa. Afinal, não conhecia o trabalho de Martin McDonagh, diretor e roteirista da película, e é natural para qualquer ser humano ter certo receio de se aventurar em território desconhecido. No entanto, a viagem para Bruges vale muito a pena. Tudo começa com dois homens chegando à cidadezinha medieval no meio da Bélgica. Logo descobrimos que se tratam de matadores, vindos de um serviço que deu um tanto errado.

O mais jovem, o irlandês Ray (Colin Farrell), parece ter sido o que saiu mais afetado pelos acontecimentos antes de sua chegada à cidade. Por sua vez, o experiente Ken (Brendan Gleeson) possui já alguns anos na vida para saber que problemas acontecem. Mandados para Bruges por seu chefe, o desbocado Harry (Ralph Fiennes), os dois devem ficar por lá até receberem ordens em contrário.

Com os hotéis lotados, graças à alta estação, ambos vão ter de dividir o mesmo quarto. Enquanto esperam um telefonema de Harry, Ken arrasta o melancólico e estourado Ray pela cidade, visitando os belos pontos turísticos e cruzando com algumas figuras bizarras – americanos, principalmente.

Durante estas andanças, eles acabam trombando com a equipe de filmagem de um remake de um filme. Lá, Ray conhece a bela Chloë (Clémence Poésy), por quem se apaixona quase à primeira vista. Outro personagem interessante que aparece é o pigm… anão Jimmy (Jordan Prentice), um ator praticamente especializado em fazer papéis bizarros e um tanto quanto racista. As vidas de todos eles se intercalarão quando Harry decide que Ray deve morrer pelo erro cometido no último trabalho.

Todas as pessoas vistas no filme cometem seus atos ilícitos, mas é quase impossível não simpatizar com eles. O mundo mostrado não é preto-e-branco, tendo várias camadas e o bom maniqueísmo simplesmente não se aplica nele. Temos assassinos profissionais, ladrões, traficantes e racistas, mas eles também possuem qualidades que os redimem, não sendo essencialmente maus.

Tal característica fascinante do roteiro de McDonagh é compartilhada por outros cineastas, principalmente Quentin Tarantino, colocando o novato em ótima companhia. Um exemplo disso é a apresentação gradual de Harry. No momento em que o conhecemos, com a quantidade absurda de palavrões proferida pelo personagem e a natureza de seu "negócio", nosso primeiro instinto é detestá-lo. Mas, à medida que novos fatos sobre ele são revelados, passamos a compreender os seus motivos e até a simpatizar com o chefe. Além disso, a interpretação soberba de Ralph Fiennes é o elemento principal para a construção desta figura.

Aliás, fica até complicado de se falar em atuações aqui. Todo o elenco está soberbo. Colin Farrell faz com que o atormentado Ray tente usar o cinismo como forma de expressão de sua culpa. Odiando a estadia em Bruges, a ironia do lugar estar rodeado de igrejas parece enlouquecê-lo. Estourando por nada, Ray parece estar prestes a perder o controle, encontrando em Chloë uma forma de escapar de si mesmo.

Além disso, Farrell possui uma química fabulosa com Gleeson, seja quando estão discutindo ou em momentos mais intimistas. Três cenas entre esses dois atores devem ser destacadas: a que se passa logo após o primeiro encontro entre Ray e Chloë, na qual o entusiasmo do rapaz em contar para o companheiro sobre a garota é palpável; a sequência na qual descobrimos o erro de Ray, onde a vulnerabilidade de Farrell já vale o seu Globo de Ouro de melhor ator; e, finalmente, o diálogo no parque, no qual a ironia da situação e a fluidez da conversa e do texto fazem mágica na tela.

No entanto, a melhor cena de Gleeson é dividida com Fiennes, em um tenso momento em uma torre, no qual a honra de Harry e a dívida que Ken tem para com o seu chefe geram um dilema moral quebrado apenas pela resolução deste último em fazer a coisa certa. Em papéis menores, mas não menos interessantes, a lindíssima atriz francesa Clémence Poésy rouba o coração não só de Ray, mas da platéia toda com sua simpática transgressora Chloë, e Jordan Prentice, que possui um talento inversamente proporcional a sua altura, rouba a cena cada vez que aparece como o anão Jimmy. O longa ainda conta com dois atores maravilhosos, Zeljko Ivanek e Ciarán Hinds, em pequenas pontas, mas que são fundamentais para a história.

Na direção, Martin McDonagh se mostra tão ágil tanto como roteirista. Envolvendo o filme em um crescendo, o cineasta captura a audiência e a faz se envolver com os personagens para, então, amarrar com uma trama que, não só mostra o que aquelas pessoas têm de melhor e pior, mas as colocam em circunstâncias inesperadas. Nada no filme acontece por acaso e o ritmo da fita faz com que percebamos isso de cara. Os créditos para esse aspecto também são devidos ao editor Jon Gregory, que jamais deixa que fita perca ritmo.

Além disso, McDonagh soube aproveitar bem a beleza de Bruges, tão desprezada por Ray, fazendo com que a própria cidade, com seu estilo de arquitetura gótica, se torne uma personagem da produção, muito bem utilizada nos elegantes planos filmados pelo diretor. A fotografia de Eigil Bryld usa e abusa da neve presente na locação, se utilizando de cores frias nas externas diurnas e de uma paleta mais forte em cenas com luzes artificiais – como a do bar onde Ray e Chloë ficam antes do clímax do filme -, criando uma iluminação única para a cidade, com a sequência final sendo especialmente linda. Já a trilha sonora da película é carregada por uma atmosfera de cinismo e erudição, com tons mais modernos em alguns momentos, nada mais adequado para o filme e seu cenário.

Irreverente, sarcástico e mordaz, este "Na Mira do Chefe" é um longa imperdível, sendo uma das pérolas escondidas de 2008. Para Ray, a eternidade em Bruges pode parecer o inferno, mas eu bem que adoraria voltar para lá… Recomendado.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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