Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 20 de setembro de 2008

Casa da Mãe Joana

Crítico, ácido e debochado. Muito debochado. Narrando peripécias de um grupo que batalha por linhas tortas para sobreviver no Rio de Janeiro, o longa-metragem faz uso sem pudor da sensualidade e cutuca o moralismo e a falta de coerência nacional.

Só pela introdução acima, já dava para ter uma noção do que se pode esperar do filme, certo? Junte a isso o fato de a produção ser estrelada por Paulo Betti, Antônio Pedro Borges e José Wilker, e ainda por cima ter a assinatura de Hugo Carvana na direção. Sim, Hugo Carvana, da bem sucedida franquia “Vai Trabalhar Vagabundo”.

Na história, quatro amigos (que se definem como vagabundos por ideologia e farristas por natureza) vivem em um apartamento que é uma verdadeira bagunça. Lembraria uma república, não fosse o fato de que seus moradores são homens acima dos quarenta, cinqüenta anos, que vivem de pequenos golpes e gambiarras em geral. Já de início, o longa coloca o público diante de uma de suas armações: aplicar um golpe em uma joalheria. Tudo teria sido perfeito, não fosse o fato do quarto integrante do grupo, interpretado pelo ótimo Pedro Cardoso, enrolar os outros três e ficar com todo o dinheiro. É então que eles se vêem na pior situação que já enfrentaram: estão sem dinheiro e a ponto de serem despejados por falta de pagamento.

O pesadelo então começa quando eles chegam à óbvia conclusão de que a maneira mais “fácil” de conseguir o dinheiro vai ser trabalhando – coisa que todos têm verdadeira aversão. PR (Betti), que foi galã na juventude, vira “coroa de programa”, colocando anúncios em jornais e recebendo as mais diversas e excêntricas clientes. Montanha (Antônio Pedro) volta a escrever em jornal com o antigo pseudônimo de Dolores Sol; e Juca (José Wilker) acaba por se tornar “babá” de um velho travesti octogenário que, apesar de estar preso a uma cadeira de rodas, continua soltando a franga.

No meio disso tudo, a filha de Juca, uma jovem tão louca quanto o pai e integrante de um banda Punk Rock, também resolve passar uns dias no apartamento; e Montanha, em meio a uma crise de criação, começa a ser assediado por Dolores Sol, seu alter-ego feminino que surge no meio de um pileque e passa a assombrá-lo como um fantasma, levando-o quase à loucura.

Hugo Carvana já ganhou a crítica brasileira quando realizou os já citados trabalhos. Com uma carreira sólida como ator, o também diretor não conseguiu deixar para trás referências de seus trabalhos passados. O que não é ruim, já que referências estão ali para serem expressadas, especialmente quando se trata da sua própria história. Mas é impossível não assistir ao filme e perceber, além da comédia camuflada por críticas à sociedade, um toque de melancolia do que devia ser o Rio de Janeiro da década de sessenta ou setenta.

Muito da experiência pessoal de Carvana está ali: de fato, ele viveu com alguns amigos em um bagunçado apartamento, quando pregavam a completa boemia. Mesmo sendo interessante analisar esse ponto de vista, parece que falta algo. Porém, esse algo sai de tempo quando percebemos como ele se sente à vontade para colocar as situações e mostrar um roteiro bem trabalhado.

O roteiro ganha por ser corajoso ao conseguir reciclar-se o tempo todo. Sempre que você pensa que a coisa não pode piorar ou ficar mais absurda, ela fica. As confusões aumentam, o dinheiro não aparece e a situação vai ficando cada vez pior. Claro, tudo com muito bom humor. O descarado deboche, a malícia e a falta de moralismos fazem a história sobressair-se. Não existe preocupação em disfarçar, em explicar demais.

Apesar de ser notável vez por outra uma estética global na dramaturgia dos personagens, não tem como se negar que, a despeito da semelhança, o tratamento é dado de uma outra maneira. Paulo Halm (que assina trabalhos interessantes para o cinema nacional, como “Amores Possíveis” e “2 Perdidos Numa Noite Suja”) foi feliz em suas colocações e críticas.

O tão falado “jeitinho brasileiro”, a acomodação e a crença de que as coisas sempre se resolvem de alguma maneira entram em choque com os preceitos de um povo que não desiste nunca, que é guerreiro por natureza e tem fé cega de que tudo pode dar certo. Entre discutir o que é o quê, é interessante como Paulo Halm não aponta o que seria certo de fato, mas abre caminho para a discussão (até óbvia) de que há várias maneiras de se enxergar algumas situações.

De repente, os malandros que não suportam trabalhar passam por tantas situações estressantes para conseguir sobreviver no dia-a-dia, que chega uma hora que você começa a se perguntar se não seria mesmo mais fácil ele se conformar e encarar um emprego de carregação. No final das contas, ao mostrar o perfil do típico malandro carioca, conhecido por ter vida fácil, vemos que a vida de quem vive de pequenos trambiques pode ser menos simples e mais confusa do que parece.

Beatriz Diogo
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