Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 13 de setembro de 2008

Ensaio Sobre a Cegueira

A tão esperada adaptação da obra do vencedor do prêmio Nobel de literatura José Saramago pelas mãos do indicado ao Oscar Fernando Meirelles finalmente chega aos cinemas brasileiros. A indiscutível qualidade do livro publicado em 1995, os meses acompanhando o blog da produção e as notícias divulgadas pela imprensa só fizeram a expectativa crescer.

Logo após o fim da projeção, perguntei-me o quão diferente seria minha reação se não tivesse lido “Ensaio Sobre a Cegueira” antes de assistir ao filme ou não tivesse acompanhado tudo sobre os bastidores, desde a escolha do elenco às críticas negativas em Cannes. Infelizmente, nunca poderei saber. Imaginava que pensamentos do tipo “isso não está exatamente como no livro” ou “é exatamente como imaginei quando li aquele capítulo” ou ainda as ligações das cenas aos comentários do diretor no blog pudessem me tirar a emoção que é tão presente na literatura. Cheguei à feliz conclusão, porém, que toda a leitura prévia me fez admirar mais ainda o trabalho de Meirelles e de cada um em sua equipe.

Em uma cidade qualquer, uma estranha epidemia de cegueira branca vai tomando conta dos cidadãos. Primeiro, um homem no meio do trânsito e a seguir um a um todos os que estiveram em contato com ele. Como medida de segurança, o governo decide abrigar os infectados em um antigo sanatório em uma espécie de quarentena até que se tenham respostas para o que parece inexplicável. A situação calamitosa leva os novos cegos a viverem em condições desumanas.

Lá dentro, porém, a mulher de um médico mantém um segredo. Apesar de todos à sua volta terem perdido a visão, ela permanece estranhamente com a sua perfeitamente estabelecida. Em sua ala hospitalar, ela acaba adotando alguns como uma família dentre os quais uma prostituta, um garoto que perdeu a mãe, um velho com catarata e um casal de japoneses.

Fernando Meirelles comentou em seu blog sobre o carisma de Sandra Oh, que realmente chama a atenção em cena. Os fãs da série "Grey’s Anatomy" sabem do que estou falando. A pequena participação afetiva como Ministra da Saúde nos faz querer ver mais. Já sobre Gael Garcia Bernal, o diretor falou do processo de criação do personagem e sobre como juntos eles criaram o tom meio moleque do vilão, o Rei da Ala 3. O ator mexicano encontrou acidentalmente um vidro de esmaltes em um dos ensaios e resolveu levar isso para cena quando seu personagem repete o acontecido e pinta as unhas de uma mão. A partir daí, Meirelles adicionou humor negro às cenas que envolviam Bernal. O ponto alto da ironia é alcançado na cena em que o personagem entoa pelo alto-falante a música “I Just Called To Say I Love You”, de Stevie Wonder, zombando dos colegas de cárcere enquanto a câmera mostra a devastação em que o sanatório se tornou.

O grande destaque, no entanto, é sem nenhuma surpresa Julianne Moore. Meirelles já havia alertado: “Tudo na cena está ruim? Corta para um close da Julianne Moore. Aí é xeque-mate”. Sua personagem, por ser a única que pode enxergar, carrega um peso maior na trama e é também os olhos do espectador durante o inferno vivido lá dentro. Ora, é comum que coadjuvantes com arcos bem desenvolvidos na literatura acabem perdendo espaço para o protagonista em uma adaptação cinematográfica, mas com Julianne Moore em ação isso é perdoável.

Já era esperado o uso excessivo de brancura na fotografia de César Charlone, afinal o diretor brasileiro deixara claro que queria que a audiência chegasse o mais perto possível do que os personagens estavam enfrentando. A idéia parece interessante, mas a quantidade de vezes que a brancura leitosa tomou conta da tela me pareceu exagerada. Excelente a idéia de utilizar os reflexos do pára-brisa do carro do Primeiro Homem a ficar Cego e depois os faróis de um carro qualquer quando da vez do Ladrão perder a visão para demonstrar o novo mundo que esses eram obrigados a enfrentar. Porém, o fenômeno foi se repetindo com cada um dos personagens do núcleo principal e a sensação passou de “genial” a um “ok, entendi o que você quis fazer”.

A versão de “Ensaio Sobre a Cegueira” que chegou às salas brasileiras não é a mesma que foi apresentada em Cannes em maio e desde as primeiras montagens no final de 2007 sofreu muitos cortes. As principais reclamações em exibições testes foram quanto ao conteúdo de cenas fortes. Cenas longas e desnecessárias, estupros demais. Meirelles fez suas mudanças e, apesar das alterações, as cenas continuam chocantes. Sem apelar, o diretor consegue extrair o máximo das atuações, da trilha e das imagens provocando apenas pela situação moral. E assim será no decorrer do filme quando “presenciarmos” assassinatos, cães devorando cadáveres na rua etc.

Concordo com Saramago quando disse que “nunca esquecerei a tremenda emoção que experimentei ao ver passar por trás de uma janela, em fila, as mulheres que vão pagar com os seus corpos a comida que lhes havia sido sonegada, a elas e aos seus homens. Essa imagem resume, particularmente, todo o calvário da existência da mulher ao longo da História. Toda a seqüência que começa com uma votação espontânea para decidir quais mulheres que estão dispostas a satisfazer os desejos daqueles que agora possuem a comida e termina com um banho de esponja do corpo de uma delas pelas outras deve ser a mais forte do filme e a que melhor lhe representa.

O convite que Saramago, e por extensão, Meirelles nos fazem é para abrir os olhos e ver. Enxergar de perto nossa sociedade complexa que parece a ponto de implodir. Em sua metáfora, foi preciso que toda uma população perdesse a visão para que se abatesse sobre ela uma crise moral, mas se realmente quisermos buscar as respostas saberemos que não é preciso tanto. A crise já existe. Esses personagens passaram pelo inferno para perceber o que é necessário e importante. Precisamos mesmo passar por algo semelhante? Saramago construiu uma das maiores obras de arte da pós-modernidade e Fernando Meirelles fez jus a ela.

Igor Vieira
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