Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 13 de setembro de 2008

Ensaio Sobre a Cegueira

Forte, tenso, perturbador, delicado, e ao mesmo tempo belo, “Ensaio Sobre a Cegueira”, baseado na obra homônima do escritor português José Saramago, consegue testar a todo o tempo o espectador.

Creio que será inevitável comparações com o livro. Apesar das poucas páginas que li da obra de Saramago, consegui sentir nessa pequena passagem do livro o clima que o filme conseguiu passar em toda sua duração. Contudo, nessa transposição para as telas, Meirelles decidiu aplicar em seu longa pequenas características que são repetitivas no livro. Por isso, permitem-se constantemente as adversas comparações.

O longa conta a história de uma cegueira epidêmica que afeta os diversos habitantes de uma cidade contemporânea sem nome e que, gradualmente, implanta o caos. As primeiras vítimas da “cegueira branca” vão sendo transferidas para campos em quarentena e, aos poucos, são esquecidas pela sociedade, onde a mesma também está à beira do colapso.

Um dos trunfos do filme (característica do livro) é o fato de os personagens serem isentos de nomes, permitindo que eles sejam estruturalmente construídos pelos espectadores. Meirelles tenta tornar o filme uma experiência deveras sensorial e nos impedir de olhar o longa unicamente pela ótica superficial, mas sim efetivar a construção de sua alma. Somos como um dos diversos infectados pela doença e temos que reinventar em nossas mentes tudo aquilo que está na tela.

Primeiramente, acho necessário abordar o roteiro escrito por Don McKellar. Apegando-se a sutilezas, as pequenas frases são o conteúdo metafórico do filme. Contudo, o texto não soube aproveitar da devida forma o tema tão rico que é abordado na história. O contexto funciona devido às grandes atuações e à direção de Meirelles. Porém, o roteiro não tem seus méritos completos. O pior erro do filme é essa constante irregularidade em sua narrativa. Momentos muito rápidos, outros muito longos e mal aproveitamento das situações são algumas dessas marcas. Não que ele seja ruim, longe disso, mas vindo de quem veio (…) merecia algo melhor.

O elenco é fantástico. Julianne Moore finalmente tem uma forte chance para arrematar a estatueta dourada. Sua atuação é comovente, sensível, e metamórfica, carregando consigo o enorme fardo de ser a única pessoa a enxergar. Lembro-me bem de uma situação, onde um vestibular pôs a frase “Em terra de cego, quem tem um olho é rei”, e pediu para que os concorrentes a explicassem. A melhor resposta foi aquela em que o indivíduo falou que, quem enxergava em terra de cegos, era incompreendido. Trazendo isso para a realidade, podemos citar Galileu Galilei, por exemplo. E esse é um dos pontos que o filme aborda constantemente e que exige muito da interpretação de Moore, e ela sempre está lá para correspondê-las.

Mark Ruffalo consegue superar sua inexpressividade e trazer à tona um rapaz com conflitos, que se vê na responsabilidade de liderar um grupo. Gael Garcia Bernal encontra-se em um papel deveras equivocado e não consegue dar profundidade alguma para o “pseudo vilão” da trama. Danny Glover não encontra espaço algum para se expressar, apesar de mostrar humildade e simpatia em seu papel. Já Alice Braga vem se tornando uma constante surpresa. Uma boa surpresa. A atriz, que vem crescendo aos poucos no cenário Hollywoodiano, mostra-se disposta a tudo pelos papéis que interpreta e se esforça ao máximo para conceder o que sua personagem pede. Em alguns momentos, ela me remeteu a lembrança de Bjork no filme “Dançando no Escuro” de Lars Von Trier, onde a personagem Selma apresenta humanidade e humildade sem igual. Parte desses adjetivos deve-se à competente direção de atores.

O cineasta Fernando Meirelles é um dos melhores diretores da nova geração. Com ângulos sempre próximos e uma interação fluente com os personagens e o ambiente, o nosso ilustre conterrâneo demonstra o quanto tem talento. Após seu idolatrado trabalho em “Cidade de Deus” e sua competentíssima direção em “O Jardineiro Fiel”, ele arrisca-se nesse difícil projeto de retratar com tanta responsabilidade um produto vindo de uma das obras mais difíceis e cultuadas no âmbito literário. Algo que lembra um expressionismo e um realismo exacerbado, ele consegue criar cenas perturbadoras e surpreendentes.

Definitivamente não imaginava alguns rumos que o filme iria tomar. É justamente nessa transição de objetivos que o filme perdeu seu equilíbrio narrativo. Isso se deve também à falha (tanto do roteiro, quanto de Meirelles) em não ter imposto um clima mais tenso antes daquele declínio vertiginoso; aspecto esse que é implementado por Saramago desde as primeiras páginas, onde descreve o desespero de estar cego com tanta minúcia, que causa um enorme desconforto no leitor. Darren Aronofsky, por exemplo, desde o início de “Réquiem Para Um Sonho” impõe um clima tenso, que alerta ao espectador sobre o que está por vir. Aqui não ocorre o mesmo.

A fotografia de César Charlone é magistral, configurando-se em um dos grandes pontos fortes do filme, além de ser algo que remete constantemente à idéia lançada pelo livro. Um aspecto que chamou a atenção por não se sustentar é a trilha sonora. Um filme como este exigia uma trilha muito mais competente do que a que nos foi apresentada. Simplesmente ela compunha os momentos e não os expressava a partir do áudio. Alguém do naipe de Clint Mansell ou Gustavo Santaolalla deveria ter assumido esse quesito e certamente o resultado seria melhor.

“Ensaio Sobre a Cegueira” é o resumo dos males do mundo de uma maneira sutil e inteligente. O longa funciona de forma magistral, graças à perfeita interação entre todos os quesitos que compõem o filme. Corajoso e provocativo, talvez esse seja o trabalho mais ousado de Meirelles. E ao final de tudo, as luzes se acendem e não faz diferença alguma. Estamos hipnotizados e anestesiados pela magia do cinema. Mas isso se daria pela magia do filme em si ou pela sua representação tão fiel e inconveniente da realidade?

Amenar Neto
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