Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 11 de julho de 2008

Cada Um Com Seu Cinema

Gilles Jacob, presidente do Festival de Cannes, decidiu homenagear a 60ª edição do evento, acontecida em 2007, com uma compilação de curtas-metragens realizados por diferentes cineastas. O resultado está em "Cada Um Com Seu Cinema", longa que revela todo o amor que cineastas do mundo inteiro sentem pela arte cinematográfica. Um filme que certamente encanta com as pequenas histórias e merece ser visto.

Apesar das controvérsias, o Festival de Cannes é um dos mais importantes do mundo, não só para aquele cinema dito "de arte", mas para toda a indústria cinematográfica. Mesmo não tendo a intenção de ser tão comercial quanto o Oscar, ainda assim algumas produções hollywoodianas acabam sendo exibidas por lá, e geralmente são massacradas. Em sessenta edições, muitos foram os cineastas premiados ou que apenas tiveram a oportunidade de participar do evento. Reunindo nomes de diferentes nações, "Cada Um Com Seu Cinema" traz a junção de 34 diretores que realizaram curtas-metragens de 3 minutos cada um, registrando a paixão pelo Cinema desde suas origens.

Cada cineasta usa seu talento e linguagem para falar de um assunto em comum e em diferentes línguas. Mesmo assim, todos eles endeusam a arte que carregam no sangue e acabam em harmonia. Apesar das óbvias diferenças de estilo e abordagens, todos eles estão centrados em mostrar como o Cinema mexe com as emoções do público. Eles contam histórias acontecidas dentro das salas de projeção, ressucitam Chaplin e o cinema mudo, bem como homenageiam Fellini e criticam uma indústria que atualmente é vista apenas como caça-níquel das grandes produtoras. Aliás, é interessante observar como a evolução do Cinema baseado na tecnologia e poder de alcance não necessariamente extingue a importância da história, precisando ser conhecida por todos os amantes desta arte.

Obviamente, nem todas as histórias são tão interessantes de serem assistidas, até porque acabam sendo semelhantes na construção dos argumentos. Entretanto, todas são maravilhosamente bem realizadas, com a preocupação intensiva no acabamento e, principalmente, com a trilha sonora. É curioso observar que uma obra de apenas 3 minutos seja às vezes mais eficaz que um longa-metragem: eis a bela criação e inteligência dos curtas! Cada obra mereceria ser analisada separadamente, já que seus contextos e linguagem são peculiares. Entretanto, me limitarei a citar os melhores articulados no longa.

É impossível não terminar de assistir a "Cada Um Com Seu Cinema" e ter, no mínimo, cinco curtas preferidos, daqueles que ficarão martelando na cabeça por muito tempo. O cineasta mexicano Alejandro González Iñarritu mostra toda a sensibilidade com "Anna", a história de uma moça cega que se emociona com os acontecimentos de uma cena narrados por um homem e pela trilha sonora. O desfecho do curta é belo, fruto de uma cabeça que já produziu clássicos como "21 Gramas" e "Babel". A forma como Iñarritu constrói personagens humanos e delicados ainda me encanta, bem como sua força ao criticar e impor idéias.

Os irmãos Jean Pierre e Luc Dardenne montam em "Na Escuridão" a malícia de um garoto que se aproveita do escuro da sala de cinema para abrir as bolsas das espectadoras, até quando a emoção de uma delas transforma o momento em uma bela comunicação entre dois desconhecidos. O francês Claude Lelouch assina "Cinema de Boulevard" com traços autobiográficos, mostrando cinco períodos de sua vida onde o cinema foi de extrema importância. O cineasta ainda nos agracia com uma pequena cena de "Um Homem e Uma Mulher", belo romane de sua autoria, em um determinado momento do curta.

David Cronenberg se utiliza de maior senso crítico ao protagonizar o próprio curta, "No Suicídio do Último Judeu do Mundo no Último Cinema do Mundo". O diretor contempla os espectadores com a narração de possíveis apresentadores de um telejornal anunciando o suicídio de um cineasta do futuro, que já não encontra mais razões (ou salas) para seus filmes. O magnetismo da narração com a arma apontada na cabeça de Cronenberg geram perguntas sobre o futuro desta arte que se rende à saturação e às grandes arrecadações.

O diretor David Lynch aparece com "Absurda", mais uma obra pouco convencional que une uma tesoura, imagens de um filme e comentários de possíveis narradores. Juntos, eles montam uma segunda história lida pelos espectadores do filme. Já o cineasta Youssef Chahine contou em "47 Anos Depois" sobre sua própria emoção ao receber o prêmio pela conjunto da obra no Festival de Cannes, desde a primeira exibição de um filme seu no evento e sua longa espera por 47 anos para ser reconhecido. Wim Wenders faz de "Guerra em Tempos de Paz" a mostra de um povo que viveu anos na exploração e vítimas de guerra e agora assistem à guerra vivida como espectadores. É interessante observar a reação de cada um ao ouvir bombardeios e ver imagens supostamente fortes.

O humor também não foi deixado de lado. Dois dos cineastas mais criativos do Cinema dirigiram seus segmentos sem a intenção de filosofar. Lars Von Trier conta em "Profissões" a história de um crítico que não pára de conversar com o homem que está ao seu lado, até que este se irrita e toma medidas brutas para que ele fique quieto. Roman Polanski aborda em "Cinema Erótico" a indústria pornográfica. Em uma exibição, um homem irrita os espectadores com seus gemidos ao assistir a um filme pornô. Porém, nem tudo é o que parece. O brasileiro Walter Salles troca o humor pelo carisma de Castanha e Caju, repentistas que falam de Cinema e Cannes enquanto planejam assistir ou não a um filme.

"Cada Um Com Seu Cinema" retoma o cinema desde seus primórdios, seja investindo nas imagens preto e branco ou então nos figurinos de época. É como se fosse uma homenagem aos tempos em que fazer filmes estava diretamente ligado à arte e criava obras incríveis. A visão dos cineastas escolhidos para montar o longa é de que cada vez menos o público vai ao cinema prestigiar um filme, principalmente nas pequenas salas de projeção, muitas vezes em mal estado. Os cineastas criticam o avanço das grandes salas de cinema, cujo objetivo financeiro é primordial, e também apontam para o público questões importantes sobre o que ele costuma ver no cinema. Em uma compilação incrível de talentos, é uma obra para ser degustada aos poucos.

Diego Benevides
@DiegoBenevides

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