Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 28 de junho de 2008

Wall-E

Uma obra-prima da sétima arte. Não existe outra qualificação pra "Wall-E", novo longa dos estúdios de animação Pixar, que chega para abrilhantar nossos cinemas com sua aparente simplicidade e um profundo toque de genialidade.

Os filmes de Charles Chaplin, a despeito de fazerem rir com as trapalhadas de Carlitos, tinham uma sensibilidade única ao lidar com a complexidade das relações interpessoais e da alma humana. Por muito tempo, o cinema não viu nenhuma obra surgir capaz de reapresentar ao público tal efeito. E que maravilhoso mundo novo é este no qual vemos uma animação computadorizada mostrando ao público novamente que fitas cinematográficas se fazem com emoções e sentimentos humanos.

Em "Wall-E", acompanhamos a incrível jornada do robozinho que dá título ao longa. Após a humanidade perder a guerra contra o lixo que ela mesma produz, a raça humana resolve tirar férias do agora inabitável planeta, deixando a limpeza da esfera azul nas capazes mãos de autômatos. Setecentos anos depois da partida dos homens do planeta, Wall-E é o último exemplar operante da longa linha de robôs-garis, tendo se mantido funcional ao recolher peças de seus companheiros que não mais funcionam.

Por algum inexplicável motivo, Wall-E acabou ganhando consciência de si mesmo e da própria solidão, passando os seus dias compactando lixo e recolhendo objetos interessantes que ele acha em suas jornadas de trabalho, sempre acompanhado de uma simpática baratinha. À noite, ele assiste a musicais antigos, sonhando em dançar ao lado de sua "alma gêmea" e não mais ser solitário.

Isto acontece quando a moderna Eva aparece mais do que repentinamente na existência do nosso protagonista, que se apaixona perdidamente por esta esquentada e moderna peça de tecnologia. O que Wall-E não consegue processar é que Eva está em uma missão, e que o relacionamento entre eles irá gerar conseqüências incríveis para o futuro do planeta e da própria humanidade.

A comparação acima com os filmes de Charles Chaplin não foi por acaso. Além de o filme contar com poucos diálogos entre seus protagonistas, a linha narrativa de "Wall-E" é bastante similar à de diversos filmes de Carlitos, com a apresentação de um humilde personagem principal, o surgimento de uma linda e inatingível garota, seguido de uma série de trapalhadas por parte do protagonista que acabam com este conquistando a garota e, acidentalmente, a uma mudança no status quo.

O respeito que o diretor e roteirista Andrew Stanton (o mesmo de "Procurando Nemo") mostra à história da sétima arte é intoxicante, com lindas homenagens a grandes nomes do cinema do passado permeando a tela, com Chaplin sendo apenas um deles e o musical "Alô Dolly" a mais explícita. É impressionante a sensibilidade ao tratar de temas tão fortes (e diversos) como amor, afastamento, solidão, humanidade e ecologia em um filme supostamente "infantil".

O próprio visual simples do protagonista remete diretamente ao Johnny 5 de “Um Robô Em Curto Circuito”. Os “olhos” expressivos cativam o espectador desde o primeiro momento Seu relacionamento com a baratinha e, posteriormente, com Eva, e sua vontade de se conectar com alguém são anseios plenamente humanos, ao passo que os próprios homens perderam contato com aquilo que os faziam grandes, características que recuperam graças ao cativante autômato.

Aliás, as crianças irão adorar as trapalhadas do adorável Wall-E, mas serão os mais crescidos que irão apreciar a obra em sua totalidade. É incrível o quanto anticomercial "Wall-E" se mostra. Apresentando um mundo de pesadelo, que fora levado literalmente para a lata de lixo quando fora dominado por um conglomerado de vendas, o filme passa uma forte mensagem sobre o verdadeiro custo de um estilo de vida impessoal e movido apenas por gastos desenfreados e vontades superficiais.

A "involução" do ser humano (mostrada nos retratos dos capitães da nave AXIOM) é assustadoramente real e ilustra muito bem como determinados "confortos" podem custar caro para a humanidade. Aliás, o flerte da Pixar com filmagens live-action (com atores reais) não é nada acidental, sendo explicado – de maneira genial – durante o filme.

O designer de som Ben Burtt foi a escolha certa para fazer a "voz" do atrapalhado Wall-E. Apesar de ser conhecido como o criador dos efeitos sonoros da hexalogia "Star Wars", Burtt não deu à Wall-E uma voz genérica emulando R2-D2, mas sim colocou toda uma personalidade nos sons emitidos pelo pequeno robozinho. Para sermos bastante justos, a dublagem nacional do filme merece créditos pela ótima mixagem, que impediu que os ótimos efeitos sonoros criados pelo lendário editor de som se perdessem. No entanto, um número maior de cópias legendadas do filme não faria mal algum.

O filme conta com músicas mais antigas em sua trilha sonora – incluindo trechos do citado musical “Alô Dolly!” – e também outras compostas para o próprio longa, em um ótimo trabalho de Thomas Newman, sem contar a maravilhosa “Down To Earth”, com performance de Peter Gabriel, que embala os geniais créditos finais da fita – que também fazem parte da trama.

A despeito de – assim como todo e qualquer trabalho da Pixar – ser visualmente perfeito, a força de “Wall-E” está em sua história. Poderoso e tocante, este é um filme que entrará para a história como uma das produções cinematográficas a alcançar o status de “obra-prima”, não apenas de um gênero, mas de toda a sétima arte.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

Compartilhe

Saiba mais sobre