Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 24 de junho de 2008

Wall-E

A simplicidade de "Wall-E" é um dos fatores mais encantadores do novo longa-metragem da Pixar. O que falta em diálogo sobra em qualidade de animação.

As primeiras palavras pronunciadas no início da projeção de "Wall-E" são decisivas. A canção "Put On Your Sunday Clothes", do musical "Hello Dolly", é apenas uma das várias referências a obras clássicas do cinema que definem a personalidade de Wall-E e a direção do longa-metragem, o nono realizado pela Pixar.

Wall-E é um robô destinado a limpar toda a sujeira deixada na Terra. Os humanos partiram há 700 anos e vivem agora em uma espécie de cruzeiro espacial, equipados com tecnologias que restringem ainda mais a interação com outras pessoas e tornam desnecessários qualquer tipo de movimento, até mesmo o da mastigação. Eles se locomovem por sofás voadores e se alimentam apenas de líquidos, o que os tornou obesos e alheios aos arredores. Tanto Wall-E quanto os humanos vivem isolados, mas Wall-E compreende o valor do contato e a importância dos detalhes que tornam o mundo mais colorido, algo explicado somente pela curiosidade.

A cada novo cubo de lixo recolhido por Wall-E, há uma nova descoberta. O personagem seleciona o que acha de mais interessante e guarda consigo, em sua casa. São muitas descobertas, de antigos brinquedos e isqueiros a fitas de vídeo, como a de "Hello Dolly", filme que ele assiste constantemente e observa com carinho especial a dança característica de musicais da Broadway em "Put On Your Sunday Clothes" e o amor de Cornelius e Irene em "It Only Takes a Moment". As duas cenas definem com perfeição quem é Wall-E, um apaixonado pela cultura humana e sonhador solitário, que quer encontrar uma companhia.

A necessidade do personagem logo é atendida. Chega ao planeta a robô Eve, uma andróide encarregada de uma missão que não descansa até encontrar o que procura, uma planta. É esse o conflito de "Wall-E", a descoberta de uma esperança ao Planeta Terra e a determinação de Wall-E em seguir para onde for necessário o amor de sua vida, Eve.

Grande parte do filme se arrasta sem diálogos. As expressões faciais e corporais de Wall-E e a trilha sonora brilhantemente construída ajudam a dar o tom da história. Cabe ao som e ao trabalho competente de animação dos profissionais da Pixar explicarem a trama que seria explícita com facilidade através de palavras. Andrew Stanton, diretor e roteirista da produção, explicou precisamente o que foi testado com "Wall-E", sem dúvida o filme mais ousado dos estúdios. O talento que todos dentro da empresa sabiam que tinham foi escancarado ao mundo. O que precisaram fazer foi trazer à luz principal o que, até "Ratatouille", longa-metragem anterior, ficava como pano de fundo de um roteiro bem pontuado.

O áudio é um banquete de possibilidades. Das palavras eletrônicas de Wall-E e Eve aos sons ambientes, os barulhos que rodeiam os personagens ajudam a organizar o cenário tomado por detalhes. Não são apenas os materiais abandonados por seres humanos na Terra ou as propagandas que recheiam a tela de conteúdo informativo que tornam o visual caótico, mas os diversos personagens em constante movimento também desordenam o ambiente. São os sons que nos mostram o que é importante de ser observado.

Como de costume nos filmes da Pixar, o personagem principal é carismático. Em "Wall-E", entretanto, essa característica é surpreendente e revela os talentos fenomenais com os quais os executivos trabalham. A dificuldade em tornar Wall-E um personagem adorável está em suas características físicas. O protagonista não possui boca ou sobrancelhas, não consegue falar e movimenta poucas partes de seu corpo de maneira limitada. Sua capacidade de expressão é fraca, mas mesmo assim é tocante e, sem dúvidas, um dos mais interessantes personagens criados pela Pixar.

Enquanto Woody, Buzz, Sulley, Relâmpago e Remy, de outros filmes anteriores, exibiam suas incertezas e conflitos para se tornarem mais humanos ao público, Wall-E não precisa disso. Ele é o único com personalidade humanitária, com os detalhes que tornam a espécie sobrevivente e curiosa. Wall-E é o mais humano de todos os personagens da Pixar.

O amor por cinema também é testado na exibição do longa-metragem. Além de "Hello, Dolly", "Wall-E" faz referência, principalmente, a "2001 – Uma Odisséia no Espaço". É propondo uma atitude semelhante à que Wall-E testemunhou através do cinema que toda a humanidade recebe uma nova perspectiva.

O novo longa-metragem da Pixar é simples, mas com uma construção tocante e um personagem memorável. Com tantos ingredientes deliciosos fica difícil encontrar um defeito que seja na obra. O que o faz não ser digno de uma nota dez? De tão simples a história se torna previsível. Nada que impeça, entretanto, o aproveitamento pleno das horas de projeção.

Lais Cattassini
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