Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 25 de maio de 2008

Cobra

Personagem emblemático interpretado por Sylvester Stallone, Cobra é o primo-pobre de Rambo e Rocky. Apesar de expressar uma época, é um filme menor, hoje merecidamente esquecido pelas novas gerações.

Marion Cobretti, ou simplesmente o Cobra, é um dos três personagens emblemáticos interpretados por Sylvester Stallone em sua carreira. Lançado em 1986, o filme virou cult, mas foi ruim de bilheteria e não teve seqüências, transformando-se no primo-pobre de Rambo e Rocky, personagens-ícones que renderam várias seqüências e milhões de dólares. O próprio Stallone não parece estimar muito o filme. Afinal, ignora-o em seu livro “Sly Moves” (inédito no Brasil), no qual revela os bastidores de algumas de suas produções. De certo impacto na época, o filme acabou tendo alguma carreira em vídeo, uma brevíssima na TV e virou um jogo de vídeo game sem nenhuma repercussão. Hoje é desconhecido das novas gerações e Stallone não tem planos de resgatá-lo, como fez com Rocky e Rambo.

Cobra é um policial durão, mas com humor non sense e gosto por alimentação saudável. Usa um revólver em cujo coldre está talhada uma naja (que em inglês é “cobra”). Suas ações são questionadas pelo Departamento de Polícia de Los Angeles, mas ele sempre é chamado quando é preciso intervir sem se preocupar com a lei. No filme, ele é acionado quando um psicopata faz reféns em um mini-mercado. No tiroteio que se segue, o criminoso é morto, mas antes anuncia que é integrante de um grupo chamado “Novo Mundo”. A polícia ainda não sabe (Cobra desconfia), mas é esse grupo que está por trás de vários assassinatos que ocorrem na cidade, apesar de a linha de investigação trabalhar com a idéia de que é um serial killer solitário. Uma noite, uma modelo (Brigitte Nielsen) flagra um dos assassinatos e vê o rosto de um dos integrantes. Cobra é designado para protegê-la e assim o fará usando os meios a que está acostumado.

Apesar de ruim na bilheteria, “Cobra” teve certa repercussão na época. O motivo foi a discussão em torno da violência do filme. Ainda que, visualmente, a violência seja clean. Não há muito sangue e as cenas fortes são habilmente mostradas através de elipses, de modo que o público intui mais do que vê. As lutas, tiroteios e perseguições de automóveis não são mais violentas que as de inúmeros filmes de ação da época, como “Máquina Mortífera”. A rigor, não há uma única cena que não possa ser vista por um pré-adolescente (que talvez até ache o filme light).

A polêmica mesmo é em torno da legitimação da violência. O roteiro, escrito pelo próprio Stallone, dá ares de herói a um policial que se acha acima da lei. Cobra é uma versão mais jovem, mais bruta e glamorosa de Harry Callahan, o policial criado e interpretado por Clint Eastwood em uma série de filmes nos anos 70 que inauguraram modernamente o personagem policial-durão-que-age-só. Cobra ignora os superiores, agride fisicamente colegas de trabalho e não dá a mínima para a lei. “Enquanto seguirmos regras e o assassino não, nós perdemos”, afirma, em um dos vários diálogos que expõe sua “visão de mundo”.

Cobra ateia fogo em um criminoso, que morre aos berros enquanto o protagonista lembra o direito de ele ficar em silêncio. Não liga se o criminoso se rende porque prefere a prisão a ser morto – “aqui é onde a lei acaba e eu começo” (ou seja, o criminoso será morto mesmo rendido). A frase mais emblemática, claro, é a que diz ao criminoso no supermercado. “Você é a doença e eu sou a cura”. Uma variante (“Na América o crime é um doença”) fecha a seqüência de abertura, com um revólver sendo armado enquanto a voz de Stallone divulga em off estatísticas de crime nos Estados Unidos.

O fato é que a polêmica trabalhou a favor de “Cobra”. A discussão deu ar de cult ao filme. Mas a verdade é que “Cobra” merece ser o primo-pobre de Rocky e Rambo. Apesar de dirigido por George P. Cosmatos (que digiriu “Rambo II”), o filme fica longe da cinematografia das duas famosas franquias. É forçoso reconhecer que Cosmatos tem um inato senso de ambiente. O uso do contraste luz/sombra cria uma atmosfera levemente expressionista, meio filme noir, meio filme de suspense. A atenção aos detalhes permite riqueza visual a gestos de luta, a armas, veículos e outros aspectos. Mas o senso de ambiente falha nas tomadas externas, quando vemos rapidamente uma Los Angeles sem identidade que não representa a América paranóica e violenta que o filme anuncia (ao contrário da Nova York de “Táxi Driver”, por exemplo).

O maior problema do filme é o formato básico, quase rude, excessivamente “popular”. Como muitos dos filmes com Stallone, é não-cerebral, tem um quê de feito-para-a-classe-trabalhadora. Homem que viveu até os 30 e poucos anos na classe trabalhadora, Stallone sempre teve na simplicidade o grande trunfo de seus filmes. Neles, o caminhoneiro, o presidiário, o policial e outros tipos da “working class” são mostrados de uma maneira que os dignifica e, mais ainda, é acessível a eles. Via de regra, os diretores (ou o próprio Stallone dirigindo) conseguem manter o equilíbrio entre o apelo popular e as exigências de um público mais elitizado.

Não é o caso em “Cobra”. A direção é tão rápida que dá a impressão que o filme foi cortado em 2/3 na edição. O excesso de planos médios o faz parecer uma série de TV. Tudo é muito fechado, como se os personagens estivessem em um estúdio, não em uma cidade (eles podem até estar, mas a idéia é que não notemos isso). A simplicidade em excesso torna os personagens superficiais. Não sabemos a motivação de Cobra, o que o faz acordar todo dia (combater o crime não é a motivação, é o resultado). Nem sabemos o que move o movimento “Mundo Novo”. Um dos criminosos anuncia que querem destruir os mais fracos. Isso não significa nada.

“Cobra” é emblemático dos anos 80. O culto ao armamentismo, tão disseminado no cinema da época, aqui encontra um dos apogeus. O Reagan ismo se faz presente, em toda a atitude do anti-herói (que age à revelia do Estado, inerte e ineficaz) e até em um retrato de Ronald Reagan numa parede em uma das cenas. Como muitos filmes dos anos 80, envelheceu mal. A idéia de justiça com as próprias mãos já foi abordada melhor, antes e depois (“Sob o Domínio do Medo”, “Valente”). É verdade que o policial anti-herói voltou às telas, primeiro na TV (“24 Horas”) e agora no cinema (“Os Reis da Rua”). Mas “Cobra” tem pouca ou nenhuma participação nisso. É um filme menor, que ficará apenas como mais um trabalho de Sylvester Stallone.

Douglas Lobo
@faq.php

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