Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 24 de março de 2008

Crônicas de Spiderwick, As

Nesta já não tão recente febre de aventuras fantasiosas estreladas por crianças, "As Crônicas de Spiderwick" se destaca por sua narrativa e personagens interessantes. O longa ainda conta com atuações sólidas de seu elenco, principalmente do jovem Freddie Highmore.

As melhores histórias de fantasia são sempre aquelas que, a despeito do seu desprendimento da realidade, nos lembram do peso na vida real. Com a trilogia "O Senhor dos Anéis", o nível de aceitação deste outrora renegado gênero foi às alturas, com diversos estúdios investindo em longas baseados em livros que bebessem da mesma fonte da obra de J.R.R. Tolkien. E foi assim que este "As Crônicas de Spiderwick" fora vendido junto ao público, que provavelmente se surpreenderá com o que verá em cena.

Em nenhum momento da projeção, "As Crônicas de Spiderwick" chega a lembrar a trilogia do Anel ou mesmo "As Crônicas de Nárnia". O filme, com sua história mais contida e intimista, mais parece um distante primo americano de "O Labirinto do Fauno". E, embora não tenha o alcance dramático do trabalho de Guillermo Del Toro, a fita não decepciona.

Baseado no livro de Tony DiTerlizzi e Holly Black, somos apresentados à família Grace. A mãe, Helen, acaba de se separar de seu marido, saindo com seus filhos de Nova York rumo a uma cidade mais interiorana, à antiga casa pertencente à sua tia-avó Lucinda Spiderwick, que foi internada em um hospício. É claro que nem todo mundo está feliz com esta situação, com um dos filhos do casal, Jared, não se preocupando nem um pouco em reprimir sua raiva da mãe.

Sendo muito ligado ao pai, ele culpa Helen pela desestruturação da família, sentimento não compartilhado por seu retraído irmão gêmeo Simon ou por sua combativa irmã mais velha Mallory. O que nenhum deles sabe é que a antiga casa dos Spiderwick guarda um segredo que pode colocar a vida de todos eles em perigo e que fará com que Jared assuma suas próprias responsabilidades. Quando um antigo livro, escrito pelo dono original da casa, Arthur Spiderwick, é lido por Jared, apesar dos avisos em sua capa, o garoto acaba atraindo a atenção de uma criatura-ogro conhecida como Mulgarath, que fará de tudo para pôr suas mãos no livro.

Ao contrário de "O Labirinto do Fauno", que coloca em cheque a existência ou não do mundo fantástico mostrado em cena, "As Crônicas de Spiderwick" não faz questão nenhuma de esconder a verdadeira natureza – e os perigos – dos elementos irrealistas de seu universo. No entanto, o mérito de seu roteiro, escrito a seis mãos por Karey Kirkpatrick, David Berenbaum e John Sayles, foi colocar realidade e fantasia em pé de igualdade, com as aventuras vividas por Jared e seus irmãos servindo como metáfora para os problemas familiares pelos quais passam os Grace. Neste sentido, podemos citar as ninfas que afastam Arthur Spiderwick de sua família como uma analogia ao motivo que levou à separação do casal Grace, embora este último problema não seja tão fácil de ser lidado.

No entanto, quando se mostra como fantasia, o filme não desaponta, com uma direção de arte fabulosa e diversas criaturas bem desenhadas e representadas na tela, como as já citadas ninfas, as belíssimas fadas, além de um simpático diabrete e uma engraçada criatura-porco. Quanto a estes dois últimos, aliados dos Grace, é uma vantagem a mais para o público acompanhar o filme em cópias legendadas, já que as ótimas vozes originais do estressado Thimbletack e do suíno viciado em pássaros Hogsqueal são, respectivamente, do comediante Seth Rogen e do hilário – e sumido – Martin Short.

O visual naturalista das criaturas, não por acaso nos remete diretamente a "O Labirinto do Fauno", com certeza a maior inspiração da película, seja em seu aspecto visual ou narrativo. Seja nas fadas ou nos grotescos goblins, sempre a inspiração é vinda da fauna e da flora, fazendo o amalgama entre o real e o fantástico proposto pelo filme também presente nos efeitos especiais. No entanto, os fãs da série "Harry Potter" também poderão ver uma cena em especial que remete diretamente ao terceiro filme da franquia do jovem bruxo inglês.

Freddie Highmore simplesmente rouba a cena no filme, como vem fazendo em diversas produções nas quais participa desde "Em Busca da Terra do Nunca". Vivendo o conflituoso Jared e o tímido Simon, Highmore se sai muito bem nos dois papéis, sabendo diferenciar seus personagens. Em vários momentos, o jovem ator tem de contracenar consigo mesmo, tarefa complicada a qual tira de letra.

A irmã mais velha dos personagens de Highmore é vivida pela bela e carismática Sarah Bolger, que imprime uma boa e competitiva personalidade a mais velha filha dos Grace. Mary-Louise Parker encarna seu papel de uma mãe recém-separada de três filhos com naturalidade, convencendo mesmo nas cenas mais fantasiosas. Junto à Freddie Highmore, a atriz tem alguns dos momentos mais dramáticos da narrativa e os dois possuem uma ótima química em cena.

Em participações menores, o sempre competente David Strathairn nos coloca Arthur Spiderwick como um pai de família amoroso que acabou preso em sua própria obsessão, enquanto Joan Plowright exibe sua Lucinda como uma pessoa que conheceu a ambígua sensação de experimentar o real e o fantástico ao mesmo tempo.

Quem acaba meio que desperdiçado em cena é Nick Nolte, como o vilão Mulgarath, que possui apenas uma cena de corpo inteiro, sendo relegado ao papel de dublador no resto do filme – algo que acaba se perdendo na versão brasileira da dublagem do filme, assim como as já citadas contribuições de Seth Rogen e Martin Short.

Na parte técnica, o cineasta Mark Waters mostra-se altamente competente, sabendo lidar com seus atores de maneira satisfatória – incluindo a dupla performance de Highmore – e investindo em planos plasticamente muito bonitos, sabendo capturar a atenção do público. Além disso, Waters teve o cuidado de se cercar de profissionais competentes para contar a história.

Na direção de fotografia, Caleb Deschanel se utilizou de diversas palhetas de cores para os diferentes ambientes em que a trama se desenrola, saindo da casa, passando pelas ruas da cidade até o reino das ninfas, todos os cenários possuem sua identidade visual única, todas exploradas de maneiras diferentes por Deschanel. A edição enxuta de Michael Kahn, colaborador habitual de Steven Spielberg, dá a aventura o ritmo certo para prender a atenção dos mais novos, mais sem jamais deixar que a história perca seu nexo.

Interessante e divertido, "As Crônicas de Spiderwick" é um ótimo programa para pais e filhos, colocando, na dose certa para ambos os públicos, drama e aventura. Recomendado.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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