Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 24 de março de 2008

Senhores do Crime

Até que ponto um homem pode esconder sua verdadeira natureza? Esta é uma questão recorrente na filmografia do veterano diretor David Cronenberg, mas que se torna o ápice dos conflitos dos personagens do mais novo filme do diretor, o excelente "Senhores do Crime".

Em "Os Infiltrados", vimos o diretor Martin Scorsese trabalhar com a questão de agentes ocultos, levando às últimas conseqüências as faces abertas e secretas que as pessoas têm. O tema é semelhante ao abordado por David Cronenberg aqui em "Senhores do Crime". No entanto, Cronenberg utiliza-se deste aspecto policial da história para se voltar para o interior dos seus personagens de modo explícito, nos mostrando realmente que ninguém ali é exatamente quem aparenta ser. O conflito existe a cada segundo de projeção, não só entre aquelas figuras obviamente perigosas que vemos em cena, mas também embates de mundos e imagens.

A trama se desenrola nos bairros russos da cinzenta Londres. A parteira Anna (Naomi Watts) ajuda uma misteriosa jovem a dar a luz. No entanto, esta morre durante o parto, deixando uma menina no mundo sozinha. Disposta a impedir que a criança vá parar no mundo sem volta das adoções, Anna se utiliza do diário da falecida para encontrar qualquer família que a bebê possa ter. No entanto, com as anotações em russo – que, a despeito de sua ascendência pátria, ela não sabe ler -, ela acaba seguindo a pista de um cartão de um restaurante, que a leva até o dono do estabelecimento, Semyon (Armin Mueller-Stahl), aparentemente um chefe de família comum, mas, na verdade um perigoso gângster, que sabe que o diário pode conter informações que o comprometerão.

Nisso, também somos apresentados ao filho do criminoso, o inconseqüente Kirill (Vincent Cassel). Bêbado e orgulhoso, ele sempre está acompanhado do chofer da família, Nikolai (Viggo Mortensen), que procura ascender na organização de Semyon. Dos encontros acidentais entre Nikolai e Anna, surge uma estranha atração por parte de ambos e, na colisão do mundo "normal" de Anna e do universo da máfia russa, vários segredos serão revelados de todas as partes e grandes mudanças arrebatarão esses personagens, alterando – ou até acabando – suas vidas.

O grande diferencial do longa em relação a outras fitas policiais é o modo com que os personagens vão sendo revelados aos poucos para o espectador. O roteiro de Steven Knight é primoroso em sua cautela em nos mostrar as verdadeiras faces de cada uma daquelas figuras tão enigmáticas, algo que David Cronenberg e o editor da fita, seu colaborador habitual Ronald Sanders, conseguem explorar muito bem. Nenhuma cena no filme está ali por nada, todas servem ao propósito de nos ajudar a montar os intrincados quebra-cabeças que são as personalidades daqueles indivíduos, revelando aos poucos o que eles escondem, em uma narrativa fascinante.

É interessante ainda o fato dos membros da Vory V Zakone (a máfia russa) mostrarem suas histórias, suas personalidade e até seu posicionamento na organização através de tatuagens ("Sem tatuagens, você não existe"), marcas meramente superficiais, enquanto todo o turbilhão emocional daquelas pessoas acontece no interior delas.

No entanto, nada disso seria alcançado não fosse o trabalho do elenco envolvido. Capitaneado por Viggo Mortensen e Naomi Watts, todo o cast captura com perfeição a complexidade que envolve seus personagens. Mortensen é, com certeza, o mais imerso em seu papel. Ele interpreta o misterioso Nikolai, um homem que manobra sentimentos, segredos e atrações alheias para conseguir o que quer.

Acostumado a fazer o que for preciso para sobreviver e ascender, testemunhamos sua ascensão na Vory V Zakone de um simples chofer e faz-tudo para "capitão", submergindo cada vez mais no inferno do crime. Em uma cena particularmente chocante, aprendemos que aquele não é um capanga comum, possuindo habilidades que podem ser assustadoras até para aqueles perigosos indivíduos.

No entanto, Nikolai tem uma natureza secreta, que ele procura cultivar a cada chance que pode (vide a cena no bordel e seu diálogo com a prostituta). Esta faceta do personagem encontra afago em Anna, a pequena fresta de luz que entra em seu mundo sujo e é claro que o apelo da parteira para ele não é apenas físico, mas sim o fato desta ser uma pessoa intrinsecamente boa, algo com que ele não tinha contato há tempos.

Vivida com intensidade por Naomi Watts, Anna é uma mulher que já penou muito em sua vida. Órfã de pai, ela havia terminado um relacionamento e perdido uma criança. Com a vinda do bebê daquela misteriosa adolescente morta, ela vê seus instintos maternais aflorarem novamente, arriscando muito na chance de ajudar a recém-nascida a encontrar sua família. Sua personagem é a mais "aberta" do filme, não sendo um mistério tão grande para o espectador, servindo, tanto para nós quanto para Nikolai, de alento em um mundo sujo, nos colocando na mesma posição deste em relação a ela.

Vincent Cassel vive Kirill. Seus segredos e tentativa de limpar sua "honra" são os motores dos atos vis que vemos acontecendo na tela. Apesar de orgulhoso de sua posição como filho do "chefão", Kirill está em uma posição semelhante a de Nikolai, lutando para impedir que sua "natureza real" seja revelada aos seus pares. É interessante notar que os momentos em que o personagem dá vazão aos seus verdadeiros sentimentos são parecidos aos que vemos o verdadeiro Nikolai, em um paralelo traçado pelo filme. Cassel tem um ótimo desempenho, com sua cena final na fita sendo de uma força absurda, devendo-se ainda ressaltar sua química com Mortensen.

Foi ótimo ver Armin Mueller-Stahl em um papel de destaque na telona. O ator confere toda uma aura a seu Semyon, nos remetendo, em certos momentos, ao Vito Corleone de Marlon Brando em "O Poderoso Chefão", mesmo com esse não possuindo o caráter que o mítico "padrinho" tinha no clássico filme de Coppola. No entanto, Semyon transpira um quê de perigo que é apenas reforçado pelo rosto sereno de Mueller-Stahl, criando uma sensação de insegurança no espectador todas as vezes que o personagem aparece, algo bastante apropriado a um líder da Vory V Zakone.

David Cronenberg faz um trabalho soberbo, se utilizando de planos elegantes para contar a história. Em sua filmografia, recheada de obras bizarras, é bom vê-lo trabalhando, pela segunda vez consecutiva, em algo mais "pé-no-chão", embora tenhamos duas cenas aqui que não nos deixam esquecer das marcas registradas do diretor, uma delas de dar inveja à "Sweeney Todd". Inserindo em off trechos do diário da menina morta durante cenas específicas da narrativa, o diretor demonstra uma sagaz e triste ironia entre os sonhos da garota e a realidade triste na qual ela se inseria, com os voice-overs progredindo aos poucos ao ponto da morte desta.

Melhor ainda é o modo com que o cineasta, com o auxílio do diretor de fotografia Peter Suschitzky (outro de seus antigos colaboradores), mostra os diferentes mundos de Anna e da Vory, utilizando-se da iluminação e de cores mais claras em momentos que não envolvam o mundo do crime. Nas cenas externas, o ambiente cinzento de Londres também é mostrado de forma soberba, combinando muito bem com o tom de alguns dos personagens. A trilha sonora, do sempre competente Howard Shore, é inserida apenas em momentos-chave da narrativa. No entanto, na mais comentada cena de luta do ano – que se passa na casa de banhos pública -, a trilha se cala, dando lugar apenas aos sons guturais da violência, em uma escolha acertadíssima de Cronenberg, que ressalta o caráter brutal da seqüência.

Não diria em momento algum que "Senhores do Crime" é um filme "de máfia", mas um longa que se dedica a explorar as nuances de seus personagens, com estes lutando para alcançar seus objetivos e encobrir seus segredos. Sem dúvida, mais um trabalho soberbo de David Cronenberg e uma adição maravilhosa à sua versátil filmografia.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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