Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 16 de setembro de 2007

Instinto Secreto

Assistir à "Instinto Secreto" pode ser uma experiência frustrante já que em uma de suas tramas temos um drama psicológico absolutamente irrepreensível, enquanto na outra acompanhamos uma história policial fraquíssima. O resultado é um longa falho, apesar de deveras interessante.

Ao assistir a "Instinto Secreto", temos dois filmes completamente diferentes que, embora se passem no mesmo mundo, mal chegam a se entrelaçar. O primeiro é um ótimo drama psicológico onde vemos um homem lutar contra um vício que está corroendo sua vida perfeita. O segundo mostra uma trama policial batida contada de um modo medíocre. Infelizmente os dois vêm no mesmo pacote, com o primeiro tendo seu desempenho afetado por seu irmão mais fraco. É incrível que, contando com a mesma equipe técnica, a mesma fita tenha saído com duas tramas com resultados tão opostos. Estrelado por Kevin Costner e Demi Moore, dois atores que costumavam ser sinônimos de bilheteria nos anos 1990, o longa fora escrito e dirigido por um profissional que não era conhecido pelos gêneros contidos na película.

Em "Instinto Secreto", somos apresentados ao Sr. Earl Brooks (Costner), pai de família dedicado e um empresário bem sucedido do ramo de fabricação de caixas que está sendo homenageado pela Câmara de Comércio de sua cidade como o "homem do ano". O que é ignorado pela família e amigos de Brooks é que ele sofre de esquizofrenia, no melhor estilo do protagonista de "Uma Mente Brilhante", tendo seu próprio amigo imaginário, chamado Marshall (William Hurt), que o incita a cometer assassinatos em série. Brooks havia conseguido largar de seu vício pela morte por dois anos, mas em sua noite de glória, ele é convencido por Marshall a voltar a este "mau hábito". Conhecido pela polícia como "o assassino da impressão digital", Brooks mata casais no meio do ato sexual, põe a impressão digital numa parede perto deles e os coloca em posições afetivas. Incrivelmente minucioso, ele sempre toma todas as precauções para não ser pego.

Seu alvo desta vez é um casal que leciona dança. O problema é que Brooks não sabia que eles eram exibicionistas e deixavam a janela do quarto aberta, fazendo com que ele seja visto por um voyeur (Dane Cook), que passa a chantageá-lo para que o mostre um assassinato em primeira mão. Enquanto isso, ele ainda tem de lidar com a sua filha Jane (Danielle Panabaker), que largou a faculdade e voltou inesperadamente para casa. Paralelamente a isto, conhecemos a detetive Tracy Atwood, responsável por investigar o caso do assassino serial. Atwood, que nasceu em berço de ouro e trabalha na polícia por motivos desconhecidos, está passando por uma crise pessoal, com um ex-marido (Jason Lewis) extorquindo dinheiro de pensão alimentícia e sendo pressionada para entregar o seu caso para o FBI e ficar trabalhando em escritório. Além disso, outro serial killer conhecido como "Carrasco" (Matt Schulze), que a detetive havia prendido há alguns anos, escapou da cadeia e quer vingança contra ela.

Logo por esta descrição, já percebemos a brutal diferença entre os dois lados da fita, com uma trama que conta de uma forma absolutamente original a história de um serial killer que reconhece a gravidade de seus atos e deseja parar de cometer tais atrocidades. Esta é constantemente interrompida por outra trama que mostra uma investigação policial repleta de todos os clichês do gênero, o que acaba por comprometer o resultado final do filme. A impressão que fica é que Moore pediu para que sua personagem ganhasse várias subtramas para aumentar seu tempo de tela. Sua personagem – e as situações pelas quais ela passa – são o calcanhar do filme. A atriz até que tenta dar um ar interessante a sua personagem, mas acaba se tornando um clichê ambulante como o arquétipo de policial durão em filmes de ação, com a diferença apenas por ser mulher. Todos os chavões estão lá, como o superior (neste caso, superiora) que está a ponto de tirá-la do caso, o cônjuge interesseiro, o tiroteio com o vilão, etc. E Moore passa por tudo isso sempre com "estilo", o que torna a detetive que interpreta um alguém irritante. Seus coadjuvantes não têm nem a oportunidade de atuarem, já que não passam de "pessoas com quem Demi interage", sem fazerem muita coisa na trama além disso.

Do lado de Costner, a coisa muda de figura. O ator dá um verdadeiro show como o complexo Earl Brooks. O ator faz sua melhor interpretação em um filme desde "Treze Dias que Abalaram o Mundo", conseguindo representar cada nuance de seu personagem, desde o marido dedicado, passando pelo homem de negócios talentoso e chegando naquelas duas faces do Sr. Brooks que mais importam para o filme: o pai amoroso e o assassino frio. A cena em que Brooks nos mostra toda sua fragilidade e o amor que sente por sua filha é absolutamente fabulosa, graças à interpretação de Costner. Sempre carinhoso com a filha, logo ele percebe que há algo de errado com a jovem aparentemente normal vivida por Danielle Panabaker, que tem um ótimo e perturbador desempenho em cena, aliás.

O filme nos dá várias hipóteses para a origem da matança perpretada por Earl. Ele aparenta ter sido um assassino do governo – por conta de suas espantosas habilidades e por um determinado diálogo, onde ele disse que já matou antes de seu vício -, mas o vício pode ter origens mais profundas, vindo de sua esquizofrenia, sendo uma doença. A existência de Marshall (Hurt) é prova cabal disto. A interpretação de William Hurt deixa claro que Marshall é movido apenas por suas necessidades mais básicas – respirar, comer, transar e matar -, sendo ele, na verdade, uma manifestação do ID de Earl, parte da psique que não possui freio moral algum, mas que, sendo parte da mente de um homem capaz de amar, possui seus momentos de ternura, belamente retratados por seu intérprete. Já Dane Cook vive o voyeur chantagista Sr. Smith como outra figura entregue a seus impulsos, não possuindo maiores motivações além de seus próprios desejos, enquanto a atriz Marg Helgenberger, conhecida por seu trabalho na série "C.S.I.", vê sua personagem ser pouco explorada pelo roteiro, servindo apenas como um apoio à Costner, jamais como uma figura independente.

A dualidade do filme também se reflete na equipe técnica, que tem desempenhos diferentes em cada um dos "seguimentos" da película. Em seu segundo longa como diretor (o primeiro havia sido em 1992, com "Kuffs – Um Policial por Acaso"), Bruce A. Evans se sai bem, com bons ângulos de filmagem e mantendo boa parte do elenco nas rédeas, cometendo alguns eventuais escorregões no que concerne às cenas estreladas pela personagem de Demi Moore, onde várias vezes cede ao exagero e às convenções dos filmes policiais. Um exemplo claro disso é a seqüência onde a Det. Atwood se vê seguida por uma figura encapuzada, feita de uma maneira totalmente regada a clichês, ao contrário do ótimo trabalho de câmera mostrado na cena onde Brooks comete o assassinato dos professores de dança. A fotografia de John W. Lindley não lembra o ótimo trabalho que este havia feito no maravilhoso "Pleasentville – A Vida em Preto-e-Branco", se atendo ao feijão-com-arroz na maioria das cenas, embora se destaque um pouco mais na maioria das cenas no escuro e peque pelo excesso numa cena de tiroteio em particular. Já o trabalho de edição feito por Miklos Wright (que havia trabalhado com Kevin Costner em "Pacto de Justiça") merece pontos por conseguir manter coesa a projeção com duas tramas correndo em paralelo.

"Instinto Secreto" poderia ser um filme espetacular não fosse a existência da Detetive Atwood nele, já que o longa funcionaria muito bem sem um antagonista presencial para o maravilhosamente complexo personagem vivido por Costner, se tornando bem menos interessante graças aos forçados eventos pelos quais a policial passa. Mesmo assim, ainda vale a ida ao cinema para conferir a genialidade de Earl Brooks. Uma dica válida seria que, ao conferi-lo em DVD, saltar todas as cenas com Demi Moore. Com certeza, assim o longa melhorará e muito.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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