Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 11 de novembro de 2006

Volver

"Volver" reafirma a capacidade de Almodóvar de captar plenamente a alma humana. Um dos pontos altos do filme é o seu roteiro, que alterna muito bem os momentos engraçados e emocionantes. O longa mostra-se uma marcante lição de companheirismo, confronto com o passado, ajuste de contas e amor familiar.

Pessoas mudam, e o cineasta Pedro Almodóvar sabe muito bem disso. Se antes o que mais se via nas obras de Almodóvar era a presença forte do kitsch, personagens pitorescos e uma trama quase sempre permeada por sexo, seja ele mais "normal" ou o mais pervertido, agora as obras dele são mais contidas, menos espalhafatosas ou loucas.

Em "Volver", somos mergulhados em um turbilhão de emoções que estão presentes na vida de Raimunda (Penélope Cruz, que parece só saber atuar quando está em parceria com Almodóvar), Sole (Lola Dueñas), sua irmã, e Augustina (Blanca Portillo), grande amiga sua. Raimunda é uma jovem mãe, trabalhadora e atraente, com um marido desempregado chamado Paco e uma filha adolescente. Pelo fato de sua família não estar muito bem financeiramente, a mulher sente a necessidade de manter mais de um emprego. Embora tenha passado grande parte de sua vida com sua tia Paula (Chus Lampreave), Raimunda ainda nutre amor e carinho por sua mãe. Sole é a irmã mais velha. Seu ganha pão consiste em manter um salão de beleza não declarado. Abandonada pelo marido, que fugiu com uma cliente sua, Sole vive sozinha desde então.

Certo dia, Raimunda recebe um telefonema da irmã, que diz que Augustina repassou a informação de que tia Paula havia morrido. Infelizmente, Raimunda, mesmo amando a tia, não pôde comparecer ao funeral porque encontrou o seu marido morto na cozinha com uma faca enterrada em seu peito. Para completar, sua filha adolescente confessa que matou o pai, pois ele estava bêbado e havia tentado abusar sexualmente dela. Sole, então, tem que voltar sozinha à La Mancha para o enterro da sua tia. Ela escuta, durante o funeral, uma conversa entre as mulheres da aldeia sobre a sua mãe, que havia morrido em um incêncio, ter voltado do outro mundo para cuidar de Paula em seus últimos anos, quando esta estava doente. Para surpresa de Sole, os vizinhos relatam esta suposta volta da mulher de uma forma bastante natural. Já em Madri, Sole escuta uns barulhos advindos do porta-malas de seu carro. A princípio, a mulher não quer acreditar e fica bastante apavorada, todavia, o ruído continua. Quando, finalmente, consegue vencer o medo e olhar o que está dentro do porta-malas, depara-se com um fantasma que possui praticamente a mesma aparência de sua mãe. A partir daí, situações inusitadas envolvendo Sole, suas clientes, e o fantasma da mãe acontecem. Raimunda, por sua vez, decide não revelar a verdadeira história do assassinato de seu marido, apenas dizendo que ele a abandonou. Portanto, as duas irmãs vivem situações inesperadas, fazendo com que confrontem seus medos e fantasmas do passado.

Um dos pontos altos do filme é exatamente o roteiro. Repleto de momentos engraçados, como a cena em que Raimunda entra no quarto de Sole e começa a sentir o cheiro dos peidos (é usado esse termo mesmo, logo, quem sou eu para ousar chamá-lo de "flatulências", por exemplo?) de sua mãe, ou emocionantes, como na cena da conversa de Raimunda e Irene, onde os segredos são revelados e as máscaras caem, ele alia as sutilezas que Almodóvar capta da vida real com muita maestria à característica universal de conseguir uma fácil identificação por grande parte do público.

Apesar de ter praticamente somente personagens femininos, muitas características que permeiam qualquer amizade, seja ela entre quaisquer gêneros, podem ser encontradas. É uma belíssima lição de companheirismo, confronto com o passado, ajuste de contas e, acima de tudo, amor familiar.

Melhor filme do Almodóvar? Não para mim. Ainda prefiro "Tudo Sobre Minha Mãe", mas, com certeza, esse só certifica mais ainda a capacidade genial do diretor de captar a alma humana – e não só mais a feminina – e mostrar que, bem de perto, todos temos um passado. E que mais cedo ou mais tarde, iremos nos confrontar com ele. Volver.

Na pré-estréia do filme, houve um debate após a exibição. Este tinha como tema a importância das relações familiares. Mediado pelo psicólogo João Vecente Menescal e contando com a presença da terapeuta ocupacional Ana Maria Norões e da psicóloga e especialista em família Patrícia Marques, o debate trouxe algumas discussões interessantes como o papel da mulher na sociedade, as relações familiares, as máscaras que colocamos, ou colocam, em nós e um crime absurdo que está mais presente do que imaginamos na sociedade: o abuso infantil.

E assim fica o recado: "Volver" já é uma experiência rica e engrandecedora por si só, e, associado ao debate que ocorreu após a sessão, se tornou não somente uma obra obrigatória para quem se interessa por relações familiares, mas um filme único e complexo que levanta vários questionamentos sobre vida, amizade, família e amor.

Andreisa Caminha
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