Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 31 de outubro de 2006

Sonhadora

Sua premissa simples e propensa a cair na previsibilidade chata acaba agradando por ser bem trabalhada. Nem a previsibilidade de "Sonhadora" verteu-se para a chatice. Pessoas certas, nos locais certos com os elementos certos.

É complicado se fazer um filme de drama cujo assunto, para tudo ficar bem, é preciso terminar bem. É assim que um filme é propício à previsibilidade. Nós sabemos o que vem por aí, pois será para o bem dos personagens que passam por esse drama e nós sabemos como vai acabar. Entretanto, o que faz de um projeto com essas premissas ser muito bom, beirando o excelente, é o carinho com que essa trama é tratada e, principalmente, um inteligente trabalho com essa tal de trama previsível. Ora, se é previsível, que seja de uma forma boa. Esse boa, vejamos, não é dificultar a chegada do fim, enrolando o espectador, mas trabalhar competentemente o desenrolar da história e fazer com que essa seja cativante. "Sonhadora" se porta muito bem assim.

A trama central do filme gira em torno das personagens Cale Crane (Dakota Fanning, de "Guerra dos Mundos"), Ben Crane (Kurt Russell, de "O Soldado do Futuro") e uma égua, chamada Sonador (Sonhadora ou Dreamer). Ben nem é um pai muito presente para Cale, pois ainda a vê como uma simples criança, relutando, inclusive, a levá-la para seu trabalho. Com o passar do filme, fica clara que sua relação de distância com a filha vem de más experiências que não foram bem explicadas – e nem precisava, pois ninguém é tolo – de Ben para com seu pai Pop Crane (Kris Kristofferson, de "Blade 2" e "Blade: Trinity"). Mas, como a boa pessoa que é e vendo o esforço da filha, Ben passa a mudar muitas coisas na sua vida para unir esforços e curar a égua Sonhadora. Lógico, a coisa não é fácil, pois o animal teve sua perna fraturada, mas, com o amor de Cale, a compreensão de sua mãe Lily (Elisabeth Shue, a Jennifer Parker de "De Volta Para o Futuro I e II"), a competência de Ben e Pop, e a ajuda impagável de Balon (Luis Guzmán, de "A Hora do Rango") e Mandelo (Freddy Rodríguez, de "A Dama na Água") – dois integrantes da equipe que cuidava de Sonhadora nos tempos áureos – tudo terminará da forma que tem de terminar.

O roteiro até que lembra o do filme "Seabiscuit – Alma de Herói" (estrelado por Tobey Maguire, de 2003), mas, dessa vez, não é o drama de um cavalo e um jóquei, e sim de uma família. A égua Sonhadora é um elo indispensável para que a família Crane tenha sua união diária, como realmente uma família almeja ser. O roteiro é tão direto nesse ponto – acertadamente – que se vê um mau relacionamento de Ben Craner com sua esposa e sua filha quando tudo com relação à Sonhadora não vai bem, mas quando as coisas mostram-se melhorando o filme mostra um casal unido (tanto que a cena íntima do casal é só quando tudo está realmente bem) e uma filha bem correspondida pelos pais.

É muito interessante como o filme trabalha a previsibilidade casual da trama. Ele pega quase todos os clichês, deixa-os agradáveis e transforma o desenrolar dessas previsíveis cenas em algo cheio de carisma que, conseqüentemente, enche quem assiste de carisma. Para quem não é muito fã de sentimentalismo e não costuma se identificar com filme, nem tente, pois ele depende muito daquele que está recebendo toda aquela bonita história.

Para um longa realmente cativar é preciso, além de uma história bem trabalhada, personagens cativantes e, para isso, o papel do elenco é fundamental. Tudo começa com a boa escolha dos atores, inclusive para os papéis mais simples. "Sonhadora" é um verdadeiro desfile desses atores e atrizes. Depois de alguns fracos papéis, Luis Guzmán volta a emprestar seu carismático tom latino para um drama e, ao seu lado, está a competência de Freddy Rodríguez, cujo personagem, o jóquei Mandelo, cativa tanto Cale quanto os espectadores no momento certo. Elisabeth Shue, uma atriz teen dos anos 80, estava um tanto quanto esquecida, mas não teria escolha melhor para a sua personagem Lily que, mesmo estando pouco tempo em destaque, demonstra uma desenvoltura de família muito importante.

Para fechar, está o trio que une atuações brilhantes com personagens muito interessantes, cito três nomes: Dakota Fanning, Kurt Russell e Kris Kristofferson. Como essa atriz-mirim (Dakota) é competente. A simpatia que sua interpretação causa é incrível, vista a limpidez com que ela desenvolve sua personagem. Kurt está indo direto no ponto, apesar de pequeninas falhas, sua desenvoltura no drama é marcante. E, para fechar, o tom de birra do veterano Kris está aí mais uma vez, sem novidades, mas de deveras importância para a trama do filme. Cativante é como o elenco pode ser tratado.

A trilha sonora é outro importante favor. Sempre notada por mim ao decorrer do filme, ela é de uma pureza incrível. E, para melhorar o tom musical do filme, soma-se o fator de ela ser somente instrumental, o que é até mais fácil de se trabalhar, mas que não desvia a atenção dos sentidos do filme, bem como não distancia a audição da trilha.

Como muitos elementos bem trabalhados, os 102 minutos de drama do filme passam longe de serem cansativos, mesmo a história tendo quase nenhuma ação. Infelizmente, o filme não é digno de um dez bem dado, porque ele é dependente de como o espectador irá recebê-lo. Ou como mais um filme de drama, ou um drama familiar, muito bem trabalhado, cheio de elementos bem postos na celulose e com um final previsível, mas que cativa e, se a pessoa for mais fraca, emociona bastante. Seu negócio é "pipocão" ou blockbuster? Esse é o filme errado.

Raphael PH Santos
@phsantos

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