Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 01 de setembro de 2006

Transamérica

De uma sensibilidade e simplicidade absurdas, "Transamérica" mostra as medidas certas de como compor um filme e eleva o talento de Felicity Huffman ao nível das grandes atrizes hollywoodianas.

O filme conta a história de Sabrina 'Bree' Osbourne, uma transexual que tem como maior sonho fazer a operação de mudança de sexo e ficar realizada por completo. Na iminência de conseguir a autorização para efetuar tal cirurgia, Bree recebe uma ligação de um presídio que afirma que um dos detentos é seu filho, fruto de um relacionamento colegial passageiro na época que ainda vivia com corpo e mente de um homem. Sua terapeuta decide que, antes de liberar a tão esperada cirurgia, Bree precisaria resolver seus problemas familiares. É aí que ela procura o filho em Nova York e tenta ajudá-lo, enquanto precisa estar de volta para realizar a operação. Neste meio tempo, ela passa a conviver mais com o garoto Toby e uma relação bastante interessante vai se desenvolvendo entre ambos, enfrentando conflitos decorrentes da sua escolha sexual e com a obrigação de contar para o jovem que é seu pai.

O roteiro de "Transamérica" é, acima de tudo, leve. Sem enrolar muito e sabendo dosar na medida certa cada aspecto de sua trama, mostra sua peculiaridade ao tratar do assunto do transexualismo sem cair em estereótipos forçados e sem fazer de Bree uma caricatura escrachada do que os transexuais são, acertando ao tratar sua personagem com a maior sensibilidade que ela poderia ter, sem exagerar na masculinidade e dando um toque feminino eficaz que, por mais que saibamos que ali embaixo está Felicity Huffman, acreditamos que ali também está Bree, um personagem simples que, como qualquer outra pessoa, tem seus sonhos e anseios. O diretor e roteirista Duncan Tucker soube trabalhar sutilmente a parte do preconceito que a sociedade tem com aqueles cuja orientação sexual não é a, digamos, "normal". Claro que Tucker mostra momentos que Bree é criticada e sua auto-estima se desintegra, mas nada que caia naquele clichê do preconceito pesado que sabemos que a sociedade tem, o que não faz de "Transamérica" um filme superficial, justamente por conseguir ser eficaz na sua simplicidade.

Por mais que o desenrolar da trama não traga novidades, a forma como é conduzida ameninou os clichês nos quais o filme poderia ter caído e se prejudicado. Desde o primeiro momento, ficamos esperando ansiosos pelo processo de conhecimento dos personagens e como estes vão reagir quando toda a verdade vier à tona. O interessante é que, quando esses momentos que já sabíamos que chegariam realmente chegam, mostra-se tão natural que, por mais mexicano que pareça, o roteiro não desagrada em nenhum momento. Os sentimentos dos personagens são trabalhados a partir de vários pressupostos que nós mesmos impomos, já que suas histórias começam já em um clímax e pouco se sabe sobre o passado de cada um e em momento algum o roteiro falha ao tentar aproximar o público do elenco, mesmo porque como um bom road movie, não tem como evitar uma identificação entre o espectador e os protagonistas. Do mesmo jeito foi interessante também a trilha road que foi usada na trama. Apenas querendo ilustrar a história como um todo, não se responsabiliza em marcar os momentos do roteiro e isso foi tratado com competência, coisa que muitos filmes por aí acabam deixando a desejar.

Tucker realmente impressiona mais como roteirista do que como diretor. Novato, mostra-se bastante sintético nas suas tomadas e não traz uma grande dimensão para as cenas, coisa que realmente poderia ter sido melhor explorada, já que ele possuía em mãos um excelente roteiro que talvez um diretor mais experiente pintaria e bordaria dirigindo-o, mas, para um primeiro trabalho, Tucker se destacou e mostrou responsabilidade. Talvez por ter vivido uma história parecida na vida real, junto da atriz transexual Katherine Conella, dividindo a mesma casa durante quatro meses e o diretor jamais desconfiou que Conella era transexual. Às vezes trazer a experiência de vida para as telonas acaba refletindo em uma harmonia intensa da trama e passa muita segurança para quem assiste; e isso Tucker realmente conseguiu e o que também ajudou nisso foi a escolha do elenco. Felicity Huffman era conhecida até então como aquela atriz do seriado Desperate Housewives e impressionou ao caracterizar Bree da melhor forma possível, sem exageros, dando uma carga dramática intensa e, ao mesmo tempo, fazendo dela um personagem carismático e divertido. O jovem Kevin Zegers parece mostra sua maturidade ao fazer de Toby um jovem problemático e, acima de tudo, vulnerável. O garoto tem uma grande presença em cena e promete ser da nova linhagem de bons atores de cinema. Fionulla Flanagan faz de Elizabeth, mãe de Bree, um personagem inicialmente repudiável por não aceitar o filho em sua atual condição, mas seu papel cresce nos instantes finais do filme.

Com uma abordagem nova e competente, "Transamérica" não pretende criticar ou santificar as pessoas cuja opção sexual não condiz com o que a sociedade estabelece, e, sim, mostrar que todos, independente de qualquer escolha, ou de cor ou de situação social, possuem sonhos que devem ser vividos e conflitos que podem ser superados. Felicity Huffman faz uma brilhante e premiada passagem cinematográfica que, certamente, não cairá no esquecimento tão cedo. Leve e descontraído, bem dosado e divertido, "Transamérica" mostra-se um ótimo exemplo de como construir uma trama que vai fluindo e que trata os clichês como meros componentes que não fazem o roteiro deslizar. Oito estrelas!

Diego Benevides
@DiegoBenevides

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