Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 03 de julho de 2006

Pergunte ao Pó

Pergunte ao Pó é um dos melhores do ano. A ver e rever, decididamente. Desaparecemos na poeira do tempo, como os sonhos esquecidos...

Robert Towne dirige este ótimo Pergunte ao Pó (Ask the Dust). Nativo de Los Angeles, começou em Hollywood como roteirista de “Lágrimas de Triunfo” de George Sidney, e “Um Casal em Apuros”, de Richard Quine (ambos de 1957), seguindo-se-lhes “Chinatown”, de Roman Polanski (1974), “Dias de Trovão”, de Tony Scott (1990), “A Firma”, de Sydney Pollack (1993), e “Missão Impossível I / II” (1996/2000), respectivamente de Brian De Palma e John Woo. Towne chegou a diretor com “As Parceiras” (1982), tedioso ensaio homoerótico, e os medíocres “Conspiração Tequila” (1988) e “Prova de Fogo” (1998).

Surpreende-nos agora com este Pergunte ao Pó, filme sobresselente, com “script” dele mesmo baseado em dois romances de John Fante (1909-83), escritor ítalo-americano com freqüência negligenciado, mas de boa sintaxe inglesa e texto ousado e rico pela percepção do mundo à sua volta e da difícil convivência humana. Cego em 1975 devido a complicações da diabetes, continuou publicando histórias datilografadas por sua mulher Joyce. Para Charles Bukowski, Fante foi sua maior influência como escritor e não admira ter sido o próprio Bukowski quem mais divulgou a obra literária de Fante, um precursor da geração Beat e da contracultura.

Co-Produção da Paramount Classics/Capitol/Films/Tom Cruise/Paula Wagner, o screenplay de Towne mantém o essencial de “Wait for the Spring, Bandini” (1938) e “Ask the Dust” (1939), nos quais o autor funde ficção e passagens de sua própria vida. O cenário é uma Bunker Hill do início dos anos 30 e narra o relacionamento de um jovem escritor em busca de afirmar-se e sobreviver pelo talento. Arturo Bandini (Colin Farrell) é o alter-ego de Fante e suas vivências são ouvidas em voz over (narrador interno) e outras em off (narrador externo), enquanto Towne faz pequenos recuos no tempo e no espaço para quebrar a linearidade e ensejar contrastes entre sua chegada e o desespero pela falta de um níquel, os encontros e desencontros em seus dias e noites. Os tempos são difíceis, estamos no auge da depressão econômica numa cidade ao mesmo tempo quente e empoeirada, hotéis de segunda, migrantes e imigrantes de toda parte, todos em busca de emprego, de ascensão social. Bandini está às voltas com duas mulheres, Camilla Lopez (Salma Hayek) e Vera Rivkin (Idina Menzel), a primeira é a garçonete mexicana do bar da esquina e a outra está marcada literalmente por cicatrizes irremovíveis. O caso com Camilla é mais duradouro, ocupa praticamente todo o filme, mas os dois não conseguem entender-se.

Ao revelar-se irritadiço e grosseiro, Bandini está reagindo, pela dinâmica do recalque, como nos seus tempos de garoto no Colorado, quando os colegas o chamavam de “carcamano seboso”. Há reflexos de conflitos não resolvidos, da luta de classes, da intolerância e do racismo, e os personagens de Fante parecem lutar contra si mesmos, como se suas origens fossem algo do qual deveriam envergonhar-se. A frase “Desaparecemos … como sonhos esquecidos” lembra uma outra segundo a qual não podemos imaginar a vida como algo maravilhoso e completo: “Todos nós vamos desaparecer deixando uma série de coisas incompletas; se não assumirmos esse fato inexorável, mergulharemos na mais cruel frustração”.

Gradativamente vemos o crescimento de Bandini, sua humanização, enquanto vive com Camilla, de quem acaba tornando-se amante. Fica surpreso quando ela pergunta “Por qual motivo V. não me pede em casamento? O seu preconceito não deixa”. A convivência entre os dois caminha para um desfecho quase imprevisível, precedido por cena de intimidade sexual. Elipses marcam depois o retorno de Bandini aos mesmos lugares de tempos mais amenos, mas tudo mudou, não há mais retorno. É a irreversibilidade do passado da qual fala Shakespeare pela boca de uma de suas figuras dramáticas.

Towne conduz com segurança e habilidade este filme sombrio, de atmosfera noir, com personagens cujo destino parece estar traçado, e compõe cenas marcantes sugestivas das ambigüidades e contradições dos seres humanos. Os ruídos, silêncios e tempos mortos são utilizados criativamente, enquanto a longa extensão da praia e o azul-fino do céu de verão parecem dissimular, pelos seus significantes, os conflitos existenciais de personagens perdidos nos labirintos da vida.

Os close-ups só enfatizam a introspecção, a atenção a certos detalhes e objetos (gotas de sangue num lenço, o barman vítima da “peste branca”, a janela pela qual Bandini entra e sai para o mundo, o plano ousado mas desprovido de erotismo, quando Vera se despe na penumbra e a câmara enquadra as cicatrizes dos seus glúteos, as cenas nas quais Bandini corrige o inglês trôpego de Camilla. A recriação cenográfica situa-se, tanto nos exteriores como nos interiores, entre as melhores dos últimos anos, como se estivéssemos vendo renascida aquela cidadezinha californiana dos anos 30 (o filme foi rodado na África do Sul) e anônimos corpos e rostos ressuscitassem, como o japonês das verduras, a gerente do hotel, o vizinho do quarto.

A fotografia em cores esmaecidas de Caleb Deschanel lembra variantes do noir e torna inesquecíveis as imagens do banho de mar com ondas negras espumosas e encapeladas. Filmado todo à noite, excetuadas poucas cenas diurnas, quando se vêem ao fundo o bonde e em plano médio os carros e anônimos passantes, bem assim o miniterremoto, Deschanel ressalta o retorno às ruínas da casa antiga, quando a câmara recua lentamente para mostrar o conjunto no qual o catavento se move e o carro se afasta.

Os atores merecem encômios, com destaque para Colin Farrel (bem mais à vontade em relação a “Alexander”), Salma Hayek, Idina Menzel, Eileen Atkins (a roteirista de “Mrs. Dalloway”, de Marleen Gorris), Donald Sutherland em atuação magistral em poucas cenas como Helfrick, e Justin Kirk no papel de Sammy. A música incidental é de Hal Pereira e Ramin Djawachi, mas quando se lêem os letreiros vermelhos da “Tavern”, em plena rua, ouvimos a melodia de ‘Gloomy Sunday”, sucesso de Billie Holiday nos anos 30, ainda hoje capaz de emocionar cultores do “jazz cool” pela música e letra. “I Don’t Want to Set the World on Fire” parece expressar toda uma época já desaparecida na poeira dos ventos e do tempo assassino.

Pergunte ao Pó é um dos melhores do ano. A ver e rever, decididamente.

L.G. de Miranda Leão
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