Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 17 de abril de 2006

Albergue, O

Além da superfície perceptível, encontramos em “O Albergue” valores e questionamentos, por mais estranhos e bizarros que possam aparentar, voltados à sociedade consumista e “viciada” por prazeres demasiadamente cruéis e egoístas.

Talvez sejam poucos que interpretem dessa maneira, e paradoxalmente, também existe a dúvida se o autor e diretor Eli Roth (que antes havia dirigido o igualmente estranho “Cabin Fever”, em 2002), pensa parecido. Mas o filme, assinado embaixo pelo conhecido amante do elemento mais cinematográfico que existe, Quentin Tarantino – que por sinal, nunca se arriscou a colocar seu nome em algo ruim -, aborda, em uma leitura desconstruidora do tão usado modelo clássico de estrutura de roteiro hollywoodiano, um roteiro complexo, porém, com cara de filme tipicamente trash.

“O Albergue” conta uma história de dois mochileiros universitários americanos, Paxton e Josh, que viajam pela Europa à procura de experiências que entorpeçam os sentidos e a memória, acompanhados por seu mais novo amigo Oli, um islandês que conheceram na viagem. Seduzidos pelos relatos de um outro viajante, Paxton e Josh acabam atraídos a um local descrito como um nirvana para mochileiros americanos – um albergue particular numa cidade desconhecida da Eslováquia cheia de belas garotas do leste europeu, loucas por estrangeiros. Assim que desembarcam, é realmente com facilidade que fazem amizade com as belezas exóticas Natalya e Svetlana. Na realidade, é um pouco fácil demais… Inicialmente distraídos pela experiência nova e excitante, os dois americanos logo se vêem envolvidos numa situação cada vez mais sinistra que, como eles irão descobrir, tem raízes nos recessos mais mórbidos e macabros na natureza humana. Isto é, se sobreviverem…

A história tem seu núcleo em um país pouco conhecido pelas pessoas, talvez podendo ter sido um erro, causando um constrangimento diplomático para a Eslováquia. O roteiro, por mais ingênuo que pareça, prima acima de tudo por, de início, enganar o espectador fazendo-o imaginar se tratar daquela fórmula já tão batida, porém, há uma quebra nesse padrão. A estética inicial é de um típico filme adolescente de suspense anglo-saxônico, mostrando jovens fazendo um “tour” pela Europa à procura de sexo, drogas e divertimento (algo clichê ao extremo). A partir desse momento, começa-se uma certa “confusão” referente a quem seria o personagem principal da trama, o que já mostra um caráter peculiar e inovador. É colocado em foco inicialmente, dando a idéia de o personagem principal ser Josh (Derek Richardson), um rapaz sério e ajuizado; um típico mocinho de um filme da terra do Tio Sam. Logo, esse conceito é descartado e passado a bola para o poliglota com jeito de latino e “cara de coadjuvante”, Paxton (Jay Hernandez, de “Fúria em Duas Rodas”).

Interessante de se notar que também existe uma subversão na leitura do mocinho e da mocinha. Em uma certa cena, tem-se a impressão que Paxton é o herói e a oriental Kana, a donzela à salvar. Só vendo o filme para notar que eles estão fora de qualquer estereótipo clássico de mocinhos intocáveis, principalmente os de Hollywood. E no desfecho, como uma confronte a toda a hipocrisia humana, o “herói” (atentem para as aspas) vê a oportunidade de extrapolar toda a sua revolta e sadismo contra os seus fantasmas sociais.

De um teor interessante de se ver, talvez o de maior importância, são as idéias embutidas em algumas cenas. Do ponto de vista filosófico, são de interesse o diálogo ocorrido num trem sobre a real natureza humana; as crianças infratoras; e o próprio conceito do Albergue, que é um verdadeiro frigorífico humano. O fato de matar, ou não, aparece com uma importância mínima na história, de modo que a própria vida é banalizada para o êxtase de milionários, aparentemente comuns, que têm como diversão torturar pessoas e vê-las agonizando. A metáfora de valores também se encaixa nos pirralhos delinqüentes. De uma certa forma, qualquer um, até aparentemente inocentes, podem ficar à margem de um sistema explorador pelos mais absurdos motivos, inclusive matar ou deixar de matar – de uma forma brutal, diga-se de passagem – por um simples chiclete. Metáforas muito bem construídas e mascaradas atrás de muito sangue.

Analisando o filme em si, vemos um filme pobre, exagerado e com um terror tão infantil – inclusive com uma falha grave de roteiro ao final – que não justificaria a sua censura. Não é à toa que se tem a impressão de que Roth, assim como Tarantino, gosta de filmes antigos, especialmente aqueles bem trash com o conhecido teor de violência bizarra. Mas as nuances sempre devem ser colocadas em pauta, principalmente nos filmes mais difíceis de se perceber pelo grande público. Pode se associar esse – que apesar de todo marketing, não considero um filme de caráter comercial – ao tão apedrejado “Mar Aberto”, que talvez 90% das pessoas que viram não gostaram, apesar de ser um grande filme.

Esse parece ser sempre o dilema de se assistir um filme cujo público é voltado ao consumo de grandes filmes de Hollywood. Ou como dizia Roman Polanski: “O grande público só gosta de ver filmes com ketchup”.

Thiago Sampaio
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