Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

2020 Nunca Mais (Netflix, 2020): rir para não chorar

Os criadores de "Black Mirror" fazem um resumo para a Netflix do fatídico ano de 2020 no formato de um hilário e sensivelmente equilibrado mocumentário com grandes estrelas da comédia.

Como acompanhar a retrospectiva de um dos piores anos de uma geração sem sofrer demais ou passar raiva? Só com muito sarcasmo, ironia e acidez. Experiência eles têm: Charlie Brooker e Annabel Jones não só são responsáveis por imaginar os possíveis futuros sombrios da série antológica “Black Mirror“, como produzem há anos os especiais de fim de ano “Wipe” no Reino Unido com a mesma pegada. Neles, Charlie comenta as notícias mais marcantes da região com doses cavalares do puro humor ranzinza britânico. No entanto, 2020 exigiu algo ainda maior e, em parceria com a Netflix, os produtores trouxeram “2020 Nunca Mais“.

Enquanto Charlie Brooker dava sua própria voz e cara como apresentador da série “Wipe“, este mocumentário se apoia nas performances de excelentes atores e comediantes para fazer humor com os trágicos fatos de 2020. Acima de tudo, trata-se de um ano marcado pela pandemia do coronavírus que matou quase dois milhões de pessoas pelo mundo, além das polêmicas presidenciais e das tensões raciais nos EUA. Acertar o tom com temas tão sérios e pesados não seria fácil e isso explica os dezessete roteiristas creditados. É preciso mesmo muita revisão e sensibilidade coletiva para acertarem a dose e conseguiram.

Narrado por Laurence Fishburne, “2020 Nunca Mais” convidou tipos marcantes para quem acompanhou o ano nos noticiários: o jornalista raivoso (Samuel L. Jackson), o cientista ignorado (Samson Kayo), a representante do governo conservador (Lisa Kudrow) e o influenciador digital millennial (Joe Keery). Para comentar o fatídico período ainda temos o velho historiador nerd (Hugh Grant), o multibilionário empreendedor tecnológico (Kumail Nanjiani), a psicóloga revoltada (Leslie Jones), ninguém menos que Sua Majestade a Rainha (Tracey Ullman) e duas cidadãs “médias” (Cristin Milioti e Diane Morgan).

Usar caricaturas e personagens fictícios para comentar e criticar fatos não é uma fórmula original. A televisão brasileira raramente fica sem algum produto de humor semelhante, como “Casseta & Planeta“, “Tá no Ar” e “Fora de Hora“. No entanto, o elenco do especial da Netflix está inspiradíssimo e seus personagens caem como luvas potencializando as especialidades de cada comediante. Mesmo assim, uma voz única atravessa as críticas. Ela é politizada, direcionada e não atira para todos os lados, mas nem por isso deixa de representar uma sensata maioria considerável do público.

Apesar de trazer muitas notícias de escopo global, o texto é centrado em fatos do eixo EUA-Reino Unido e sobra espaço até para a Netflix comentar seu papel no ano e algumas de suas produções. Porém, o Brasil não foi esquecido como representante do negacionismo científico e olhos mais atentos verão uma piada não traduzida no canto de uma tela de YouTube em uma das sequências. A adaptação da legenda em português brasileiro ainda aproveitou para embarcar na onda crítica e usou a expressão “cidadão de bem” como sinônimo de bigot, palavra inglesa que define uma pessoa intolerante ou propositalmente ignorante. Afinal, 2020 foi um ano que trouxe novos significados para muita coisa.

Além do material falado, que é a razão de ser deste mocumentário, “2020 Nunca Mais” também faz brincadeiras gráficas e até metalinguísticas para causar risadas. São montagens jornalísticas, comentários visuais e principalmente momentos que expõem o “documentarista”, a pessoa que dirige a obra falsa, para pontuar a excentricidade dos personagens ou absurdos vividos em 2020, como a ciência sendo ignorada ou políticos negando fatos na cara dura. Essa estrutura é mais sutil que o sarcasmo direto das críticas do texto, elevando assim a qualidade deste especial como obra artística.

Encontrar o tom certo para fazer rir, mesmo quando sobram motivos para chorar e se indignar, é o grande triunfo de “2020 Nunca Mais”. Diferente de outras retrospectivas e especiais de comédia, este mocumentário da Netflix ficará como registro histórico de muitas entrelinhas não ditas nos noticiários, de muito do que foi sentido em 2020 e não simplesmente resumido nos jornais ou comentado nas redes sociais. Não são poucos os que são criticados indiretamente e as carapuças podem servir em muitos espectadores, mas essa é a função social do humor: desarmar com risadas para então atacar com precisão. O bom comediante conhece a ferida que toca e não é coincidência que de um mesmo artista saíram “Se Beber Não Case” e “Coringa“, “Key & Peele” e “Corra!” e, no caso de Charlie Brooker, “Black Mirror” e “2020 Nunca Mais“.

William Sousa
@williamsousa

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