Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 02 de julho de 2020

Dark (Netflix, 2017-2020): entrelaços irreversíveis

Uma história que interpola drama e mistério numa rede confusa, às vezes frustrante, mas, no todo, bela.

Dark” surge como a primeira aposta de origem alemã a ser distribuída internacionalmente pela Netflix, ressaltando a versatilidade da empresa que, quase sempre, é competente quanto ao que traz aos seus contratantes, pelo menos em termos de séries originais. Com o seriado germânico a plataforma inova, não na temática a ser retratada, mas na forma como o faz, de modo a oferecer uma experiência interessante a quem se prestar a investir seus minutos nesse sci-fi existencialista.

A narrativa se passa na cidade de Winden, onde o misterioso sumiço de um garoto local serve de pressuposto para uma cadeia de dramas e de embaraços, tangenciando assuntos como física quântica, livre arbítrio e viagens temporais. Assim, seus episódios se dividem em três temporadas, nas quais o espectador acompanha as tentativas dos personagens de consertar e solucionar mistérios que, frequentemente, nem os roteiristas da série parecem entender de onde surgiram.

Essa confusão, entretanto, demora um pouco a se manifestar, posto que a primeira e grande parcela da segunda parte passam incólumes a isso. Elas apresentam desfechos bastante satisfatórios não só para o arco principal, mas também para todos os núcleos paralelos dessa trama multifocal.  É preciso, inclusive, destacar o excelente serviço de direção de Baran Bo Odar no que se refere aos primeiros pontos de virada do roteiro, munido de variados aparatos para articular a complexa rede que vai se construindo em torno das vidas de Jonas (Louis Hofmann) e Martha (Lisa Vikari), mediante inserção de meta-referências e utilização de objetos de cena que ajudam a contar parte da história, por exemplo. Igualmente notável, o trabalho de design de produção, incumbido a Udo Kramer, casa perfeitamente os planos fotografados por Nikolaus Summerer com a arquitetura. Ora imponentes e sóbrios à época de 1888, ora nostálgicos e festivos na linha temporal de 1986, os ambientes sugerem uma minuciosa preparação e escolha.

Na terceira e terminal temporada, contudo, se desenrolam os muitos problemas que infelizmente aparecem de modo recorrente em obras com certo grau de complexidade diegética, acabando por manchá-las completamente ou, pelo menos, por minguar sua pretensão conclusiva. Dessa maneira, Dark erra ostensivamente à medida que opta por clichês, arquétipos e muletas para fechar apressadamente ciclos que teimou em trazer à tona para enfeite, sem real propósito narrativo para o encerramento.

Como se isso, por si só, já não fosse um exercício enfadonho, a série ainda suspende a presunção de entendimento do público de que tanto se apoiou (e que deu certo anteriormente), procurando explanar a todo tempo tudo o que ocorre na tela. Não são raras as vezes em que os personagens verbalizam, quase como uma epifania e repetidamente, conclusões já óbvias para a audiência. Intencionalmente ou não, todo um joguinho de “ele disse, ela disse” cai na repetição e também incomoda, de modo que os entrelaços tornam-se irreversíveis. Torna-se realmente tão desinteressante de assistir quanto ver uma cobra dando voltas sobre sua própria cauda (o Ouroboros é tema recorrente no seriado).

Mesmo assim, os dois últimos episódios ainda conseguem surpreender positivamente, não por solucionar tais lacunas e excessos, mas por aprofundar as questões quântico-filosóficas pontuadas desde o início do drama. Entrega-se então um fim sensível e aprazível aos fãs e a quem, com carinho, persistiu mesmo nos momentos mais arrastados da obra.

A Netflix tomou uma decisão arriscada quando assumiu esse percurso em 2017: uma produção extranacional cujo ritmo não é considerado um dos mais comerciais, com temáticas igualmente impopulares. Quem, em um ritmo de vida tão frenético, ainda ousa praticar ou filosofar à maneira dos ociosos atenienses dos séculos antes de Cristo? Discutir Cosmologia, decerto, já não tem o mesmo apelo popular de outrora, assim como se debruçar sobre uma “Física Moderna” que nem é mais tão moderna. Dark reacendeu corajosamente esses debates e, por mais que tenha encontrado alguns percalços na organização desse discurso, tem potencial para alcançar uma ampla discussão pública quanto aos laços confusos e profundos que nos regem enquanto seres humanos: as angústias da existência.

Lígia Amora
@rapadura

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