Sabendo exatamente quais elementos enaltecer numa história difícil de digerir, obra de Jennifer Fox consegue tratar temas pesados com o realismo e respeito necessários.
Traumas do passado dos personagens são um ponto de partida comum para diversas obras cinematográficas. De “O Quarto de Jack” a “Manchester à Beira-Mar”, a análise do trauma é algo muito visto no cinema a partir de diferentes abordagens. Baseado em fatos, “O Conto” apresenta a vida de Jennifer Fox (Laura Dern quando adulta, Isabelle Nélisse quando criança), documentarista de sucesso que é surpreendida quando sua mãe descobre uma história que escreveu, ainda criança, sobre sua relação com dois mentores que foram grande parte da sua infância. A partir daí, a protagonista precisa confrontar o que efetivamente aconteceu no seu passado.
A produção é roteirizada e dirigida por Jennifer Fox, a mulher por trás da história real contada no filme, que não teve medo de expor uma parte tão delicada de sua vida nem de usar seu próprio nome para a personagem. Sendo uma narrativa autobiográfica, o tratamento dos eventos perturbadores pelos quais passou é realista a ponto de incomodar (porém nunca ofender) e realmente fazer o espectador refletir e sentir por ela. Em momento nenhum, cria-se uma postura de julgamento em relação à forma como os acontecimentos foram processados, muito pelo contrário: seu mecanismo de defesa é completamente compreensível, sendo inevitável torcer para que ela confronte a realidade e tente viver de modo minimamente saudável com os fatos ocorridos.
Aliciada pelos seus instrutores de equitação Mrs. G (Elizabeth Debickie) e Bill (Jason Ritter), o absurdo da situação é palpável para o público desde o início e as más intenções de ambos, combinado com a maneira abusiva que se valem da relação professores/aluna para agir com segundas intenções, também. Ver esse desenrolar de eventos através dos olhos de uma criança que não entende o que está acontecendo e, mais tarde, de uma adulta que se nega a se ver como vítima, é a parte mais difícil de digerir. O filme utiliza truques bastante inteligentes para nos mostrar como Jennifer se imaginava na sua época mais jovem em contraste com a verdadeira natureza daqueles incidentes.
Como várias pessoas que passam por situações traumáticas, a personagem coloca tudo em uma caixa no fundo da sua mente e não lida com as suas emoções de diretamente. A diretora trata esse mecanismo de defesa com bastante realismo, estruturando a narrativa de maneira a fazer com que a trama seja respeitosa às vítimas de casos semelhantes.
As atuações de Laura Dern e da pequena Isabelle Nélisse são afiadas e andam de mãos dadas com o realismo injetado no filme. Além delas, Elizabeth Debicki e Jason Ritter também estão ótimos como os antagonistas. Ao intercalar momentos de flashbacks com a linha cronológica do presente de forma coesa, o roteiro se amarra excepcionalmente. Além disso, o texto encontra êxito na representação de como Jennifer criou uma narrativa em sua mente para evitar lidar com o que realmente aconteceu. Pela perspectiva da jovem, também entendemos por que foi tão fácil para ela cair nas mãos dos seus mentores sem questionar: com um distanciamento dos pais enquanto crescia, tudo que ela mais queria era ser notada e amada. E é exatamente isso que ambos os personagens lhe dão, sob sua percepção ingênua, tornando assim tão difícil para processar objetivamente aqueles episódios. Ter que encarar o fato de que duas pessoas que ela amava e admirava, na verdade, foram aquelas que mais lhe causaram mal é o grande desafio.
Com roteiro primoroso e ótimas atuações, “O Conto” não é um filme fácil de assistir por tratar de assuntos que podem ser fortes gatilhos para quem já passou por situações parecidas, porém Jennifer Fox conta sua história, nos seus termos e do modo mais responsável possível para evitar eventuais reações negativas, decisão que se revela louvável. Em anos recentes, através do movimento “Me Too” em Hollywood, muitas mulheres que trabalham com audiovisual começaram a contar suas histórias de abuso, acontecidas dentro ou fora da indústria. Mais do que nunca, está no momento de escutá-las.