Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 29 de fevereiro de 2020

De Quem É o Sutiã? (2018): errática fábula contemporânea

Com uma proposta de humor simples, o filme poderia seguir por diferentes caminhos, porém as escolhas do diretor levam a uma série de anacronismos e decisões questionáveis.

Há uma espécie de comédia que se constrói a partir da ingenuidade do protagonista, em uma tentativa de recusa à modernidade da qual o francês Jacques Tati é o grande mestre. Veit Helmer em “De Quem É o Sutiã?” bebe dessa fonte ao criar uma fantasia contemporânea, que funciona muito bem enquanto se limita ao absurdo. Porém, ela constantemente se perde devido à abordagem datada do filme.

A trama acompanha Nurlan, um maquinista que comanda um trem todos os dias entre a zona rural do Azerbaijão e a capital do país, Baku. Pela cidade, há tão pouco espaço que os moradores penduram seus varais por cima dos trilhos da ferrovia. Durante um desses passeios, um sutiã azul fica preso no trem. Depois de seu último dia no ofício, decide se mudar para Baku para encontrar a dona da peça de roupa e, quem sabe, o amor da sua vida.

Precisando lidar com a aposentadoria e uma aparente crise de meia-idade, Nurlan é um homem solitário, condição reforçada pelo diretor tanto através do vilarejo isolado onde vive, quanto pela opção de criar um filme sem falas. Embora existam diversos sons para quebrar uma possível monotonia (do barulho do trem aos ruídos da cidade), a ausência de diálogos se mostra opressora, como se não houvesse nada para ser dito, mesmo quando as personagens precisam falar.

Por outro lado, é dessa escolha narrativa que surge o melhor do humor: o silêncio constrangedor, o uso da comédia física (mesmo que sempre discreta), o olhar relativamente exagerado ou o abaixar de ombros para demonstrar alguma insatisfação. Os recursos são pouco utilizados, principalmente para um gênero que depende tanto da oralidade, mas que se prova acertado na maioria dos casos. Apesar disso, são nos momentos de falha da comédia que o filme se mostra mais antiquado.

Se o personagem começa sua aventura para encontrar um novo objetivo de vida — ele não tem mais seu emprego, não pode casar com a mulher que ama no seu vilarejo e nem pode aproveitar a aposentadoria pescando —, com o passar do tempo ela se torna uma obsessão irracional. Mesmo com a tentativa de purificá-lo de qualquer sinal de malícia, não é possível não ver as mulheres que ele visita como um objetivo a ser alcançado. Ele não as deseja, nem quando algumas tentam seduzi-lo. Afinal, para ele só interessa aquela em que o sutiã sirva perfeitamente.

A escolha poderia funcionar, mas Veit Helmer segue por caminhos óbvios e superficiais. Assim, quando o sujeito decide invadir o quarto de uma mulher durante a noite para descobrir se a vestimenta pertenceria a ela, a cena logo passa do cômico ao doentio. Mesmo para um filme que se beneficia de uma narrativa fantástica, que estabelece suas próprias regras, as escolhas aqui não se justificam. Pior ainda é no momento que se percebe que os absurdos cometidos por Nurlan só são impedidos pelos maridos, que tratam suas esposas como mais uma de suas posses.

Mesmo buscando um estilo de narração interessante, o cineasta passa longe de atingir um bom resultado. Seu projeto possui indiscutíveis méritos, entre eles uma trilha sonora que ajuda a compor as cenas sem fala e uma fotografia que prioriza uma paleta menos saturada, estabelecendo um paralelo com a vida sem muitas cores do protagonista. Porém, sua fábula moderna se perde e demonstra que poderia funcionar muito melhor como um curta-metragem, evitando assim sequências que pouco acrescentam no desenvolvimento da trama ou das personagens.

“De Quem É o Sutiã?” pode ser visto como uma espécie de Cinderela contemporânea, em que um homem procura pela mulher com o par de seios perfeitos. Se com a abordagem adequada, essa história conseguiria se enveredar por divertidos caminhos, aqui ela se perde ao ignorar a objetificação da mulher. Nurlan também é um protagonista complicado, que tem sua obsessão idealizada (quase romantizada), causando a impressão de que tudo passa a ser aceitável, graças à sua ingenuidade — ninguém duvida que ele seja uma pessoa boa, portanto, como condená-lo? Uma interpretação perigosa, principalmente considerando a premissa do filme. 

Robinson Samulak Alves
@rsamulakalves

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