Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Joias Brutas (2019): bom trabalho de ator e autores

Assim como aconteceu em "Embrigado de Amor" e "Os Meyerowitz: Família Não Se Escolhe", Adam Sandler mostra que pode ter uma boa atuação caso seja bem dirigido, o que é feito pelos talentosos irmãos Benny e Josh Safdie.

Qual é sua primeira reação ao pensar em Adam Sandler? Simplesmente faz sempre o mesmo filme? É um comediante para ser acompanhado? Tem bons projetos, mas, em geral, se rende a clichês? Não entende o porquê de reclamarem tanto dele? Desistiu de assistir ao que ele faz? Independentemente da resposta, o ator tomou de assalto o meio cinematográfico com a produção “Joias Brutas“, disponibilizada no Brasil pela Netflix, e colocou uma pulga na orelha naqueles que duvidavam de seu talento. Apesar dos diretores Benny e Josh Safdie terem grande influência na narrativa provocativa, pulsante e caótica de um estudo de personagem controverso, é o protagonista que carrega os méritos dessa adrenalina audiovisual.

Seu nome é Howard Ratner, sua profissão trambiqueiro. O personagem trabalha em uma loja de joias atolada em dívidas por todo canto graças a negociatas duvidosas em que penhora, vende, compra e se envolve com sujeitos que colocam sua vida em risco. A esperança para se livrar da situação é vender uma pedra não lapidada vinda da Etiópia, repleta de minerais preciosos. O que parecia ser uma jogada de mestre rumo ao enriquecimento, contudo, se transforma numa jornada desgovernada que incluiu um leilão conturbado, cobradores perigosos e o jogador de basquete Kevin Garnett (vivido pelo próprio jogador em participação surpreendente).

Os irmãos cineastas deixam sempre seu estilo histriônico a serviço da caracterização de Howard. Cada sequência e transformação do ritmo da narrativa ajudam a mostrar como o negociante é um falastrão vazio, metido a malandro, movido a dinheiro e a sucesso individual que não sabe parar nem quando o caos se apresenta em seu caminho. Mesmo nas passagens mais alucinógenas e aparentemente gratuitas, há um efeito dramático revelado posteriormente. É o caso, por exemplo, da lisérgica transição do interior da opala para o organismo do homem durante um exame médico, algo sintomático de como ele é composto basicamente por ambição e lucro – características que se refletem na tumultuada vida em que mantém um casamento de fachada, vive um romance às escondidas com uma funcionária e ainda circula ininterruptamente por negócios nada promissores.

Após essa inusitada apresentação, o filme acompanha a profusão de enrascadas em que o protagonista se coloca através da sucessão de figuras ambíguas que cruzam seu percurso: há parentes exigindo o pagamento de dívidas, pessoas comuns querendo receber por relógios ou cruzes entalhadas com Michael Jackson, um astro da NBA obcecado pela opala, além da própria família e da amante que exigem de Howard o discernimento que lhe falta. Um mosaico de personagens que faz com que ele esteja constantemente saindo de um impasse para entrar em outro, conduzidos com maestria pelos Safdies que estimulam Adam Sandler a elevar a voz e partir para discussões e brigas a qualquer instante – esse detalhe de sua performance não equivale ao esterótipo visto antes em suas comédias, quando interpreta o sujeito infantilizado prestes a explodir, já que aqui se trata da representação de uma personalidade execrável nas mais absurdas situações (o que falar da sequência que desemboca em um porta-mala?!).

A descida para a anarquia também está presente no inconfundível estilo da dupla de diretores. O que já haviam feito anteriormente em “Bom Comportamento” se intensifica aqui: as cenas são filmadas para ilustrar a confusão na vida de Howard através dos cortes frenéticos, das discussões acaloradas, da simultaneidade de fatos conflituosos acontecendo, enfim de uma energia que extravasa a tela e chega aos espectadores; a trilha sonora pulsa na intensidade e na urgência de tudo que se impõe ao protagonista como numa contagem regressiva; e luzes neon, observadas no show de The Weeknd, reforçam a impressão de que tudo não passa de uma grande alucinação por drogas. Este último aspecto, por sinal, é resgatado pelos realizadores, fazendo o público mergulhar no modo de vida dos personagens que parece estar sob efeito de narcóticos, porém apenas é recoberto pelo desespero do imediatismo.

Seguir essa jornada igualmente significa atravessar uma gama variada de tons e sentimentos que assinala como o cotidiano de Howard é uma montanha-russa imprevisível. A sensação de que uma dificuldade pode ser superada é contrariada com o surgimento de um novo problema e a de que um fracasso é garantido pode ser subvertido por um golpe do destino, numa quebra de expectativas que foge da relação causa e consequência tradicional. São subversões que preenchem a narrativa com o trágico, o cômico nonsense, o melancólico, o dramático e o tenso a ponto de levar Adam Sandler a cenas que comprovam seu carisma e talento interpretativo. Ele passa pela exaltação nervosa dos confrontos com os coadjuvantes, pela tentativa de persuasão a favor de seus interesses, pela vibração acalorada diante do prenúncio do sucesso, pela tristeza frente a uma derrota pessoal e pela vergonha decepcionada escancarada em lágrimas incontidas.

Entretanto, o próprio homem é uma avalanche de contradições que o direciona para caminhos inesperados. Isso fica claro no último diálogo com Kevin Garnett, capaz tanto de demonstrar como ele transita por oportunidades e emoções paradoxais quanto de se autodefinir usando metáforas esportivas com conotações egoístas e ambiciosas – o monólogo do intérprete é o momento em que definitivamente se apropria do papel e chega ao auge da evolução narrativa. Além disso, essa mesma cena também consolida o domínio narrativo dos irmãos Safdie ao direcionar o filme para o encerramento com uma tensa montagem paralela que fortalece o imponderável do que pode ocorrer e novamente rompe expectativas, agora de forma chocante.

Após as duas horas e quinze minutos de duração, o mais novo recente trabalho dos cineastas reafirma a qualidade de tão breves carreiras. Eles voltam a dar sentido para a assinatura visual, para a potência do ritmo narrativo e para a coleção de personagens incomuns que os atraem, tendo um controle absoluto sobre as escolhas estéticas (a última transição, tão lisérgica quanto à primeira, carrega uma ironia fina sobre seu protagonista e a tese do self-made man norte-americano). Acima de tudo, eles conseguem dar outras possibilidades de resposta à pergunta do primeira parágrafo, retirando certezas ou visões pré-concebidas e colocando dúvidas e chances de elogios. Portanto, após assistir a “Joias Brutas”, qual é sua reação ao pensar em Adam Sandler?

Ygor Pires
@YgorPiresM

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