Elegante e carismática, comédia argentina homenageia a produção cinematográfica através de um intrigante mistério repleto de ótimas atuações.
Não é novidade que o atual mercado cinematográfico se encontra totalmente dominado por grandes empresas estadunidenses, renomados estúdios que há anos encontraram na repetição a fórmula para o sucesso. Faturando milhões através de incontáveis sequências e remakes, tais produtoras (ou pelo menos sua grande maioria) não só descartam ideias originais, como também investem em tramas rasas e repletas de escapismos, ignorando o cinema como uma diversão que também pode fazer o público refletir. Afinal de contas, pensam que são as cenas de ação e os efeitos de ponta que garantem rios de dinheiro, não sendo sensato investir em “riscos” que podem lhes trazer enormes prejuízos. Em meio ao monopólio da mesmice, entretanto, existem aqueles dispostos a resistir, armados com inovações vindas de diferentes países. É o caso do ilustríssimo Juan José Campanella (do premiado “O Segredo dos Seus Olhos”), diretor argentino que, afastado das pressões da indústria norte-americana, faz com seu “A Grande Dama do Cinema” uma verdadeira carta de amor à sétima arte, e sem depender dos artifícios citados acima.
Em uma antiga mansão afastada vive um grupo bastante peculiar: a atriz aposentada Mara Ordaz (Graciela Borges, “A Quietude”), estrela do cinema argentino clássico, seu marido, o também ator (embora não tão talentoso) Pedro De Córdova (Luis Brandoni, “Minha Obra-Prima”), e dois de seus parceiros na carreira, o aclamado roteirista Martín Saravia (Marcos Mundstock, “Um Time Show de Bola”) e o famoso diretor Norberto Imbert (Oscar Martínez, “O Cidadão Ilustre”). Angustiada, Mara passa as tardes idolatrando sua dourada estatueta do Oscar e assistindo aos antigos sucessos de sua carreira, imersa em uma desesperada tentativa de resgatar momentos da glória de seu passado. O trio de amigos, por sua vez, dedica o tempo a longas partidas de sinuca e xadrez e a amistosas conversas na antiquada varanda, partilhando uma vida feliz entre camaradas. É esse o universo lúdico apresentado por Campanella através da hábil sequência de abertura, ambiente no qual facilmente imergimos, marcado por divertidas tensões entre a ex-estrela e sua carismática trupe porém resistindo com graciosidade. Tudo muda, todavia, quando um misterioso casal passa a persuadir Ordaz a vender o casarão, reacendendo seu desejo de retornar à “alta sociedade” e pondo em choque a aparente tranquilidade.
A primeira grande virtude que Campanella (aqui também roteirista) trabalha a partir dessa interessante premissa é a maneira como a metalinguagem atua no desenvolvimento da narrativa. É no uso das habilidades profissionais dos principais membros do quarteto que ele encontra sua maior ferramenta para o andamento da história. Norberto, por exemplo, é o primeiro a suspeitar das intenções dos antagonistas, reconhecendo a necessidade de uma boa trama ter seu grande vilão. Especialista em dirigir atores, ele entende a complexidade humana, tentando decifrar as camadas de seus antagonistas enquanto observa de longe, como se os assistisse através de câmeras, repleto de tiques e precauções belissimamente incorporadas por Martínez. As astutas provocações, entretanto, ficam por conta de Martín, não por acaso o responsável pelas falas mais reflexivas e elaboradas de todo o longa.
Mara, por sua vez, é mais complexa. Atraída pela possível compra, ela tenta equilibrar, em um magistral trabalho de Borges, o seu encantamento pelos especuladores, supostos fãs da senhora, e o distanciamento que mantém dos mesmos, impedindo-os de se aprofundar em seu passado. Temos aí a perfeita função de qualquer atriz: simular sentimentos de forma a enganar o público. Tais tentativas, porém, nem sempre beneficiam a protagonista, incapaz de escapar da temida dupla sem o auxílio de seus amigos. É pontuado, dessa forma, a principal mensagem da obra – a importância do trabalho em equipe (por mais piegas que isso possa soar) na realização de qualquer trabalho, seja, no caso de um longa-metragem, dentro ou por trás das telas.
Em segundo lugar, de igual destaque é a multiplicidade criativa que a produção apresenta, recusando ser resumida a um só gênero. Desde o primeiro ato fica muito clara a ampla abertura do microcosmo do diretor: nele encontram-se momentos engraçados, ares de suspense, uma certa carga dramática e até alguns tons de romance, mesmo que nem todos recebam o mesmo tratamento. Ainda com a predominância dos dois primeiros, no entanto, seria injusto não destacar o interessante relacionamento entre Ordaz e seu marido, contado por meio de uma ótima homenagem ao cinema antigo (não cabem muitos detalhes para não estragar a surpresa). Casado com uma mulher profissionalmente mais habilidosa, temos em Pedro o personagem mais puro de todo o grupo, incapaz de manipular e dissimular como sua esposa. Surgem assim instigantes questionamentos: teria ela o escolhido por saber que este não seria capaz de ofuscar seu brilho? Igualmente interessantes, além disso, são os momentos mais dramáticos, estes que, apresentando um certo exagero, podem ser interpretados como uma paródia a obras semelhantes. Esse recurso, no entanto, se excede (por mais irônico que isso seja) em alguns momentos.
Também chamam atenção, por fim, o explosivo ato final, marcado por um delicioso humor mordaz, e a impressionante construção da dupla vilã, muito mais densa do que aparenta ser inicialmente e comandada por uma maquiavélica atuação de Clara Lago (“O Passageiro”), digna de elogios.
Dessa forma, “A Grande Dama do Cinema” mostra ser a opção perfeita para escapar dos padrões estadunidenses. Sublime, o filme é uma linda homenagem à sétima arte e aos seus diferentes ramos, demonstrando como nos diversos “sets da vida” boas equipes superam mirabolantes parafernálias. Divertido e encantador, é obrigatório para qualquer cinéfilo de carteirinha.