Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

Mandy (2018): terror alucinógeno nascido para ser cult

O insano devaneio visual de Panos Cosmatos leva Nicolas Cage ao limite de sua fúria para enfrentar um grupo de violentos fanáticos religiosos numa jornada infernal de vingança.

Mandy” é louco, psicodélico, brutal. Tudo que se pode esperar de um pesadelo alucinante durante uma má viagem de LSD protagonizada por Nicolas Cage (“211: O Grande Assalto”). Seu personagem é Red, um habilidoso lenhador que mora num simples e idílico recanto na floresta com sua companheira Mandy (Andrea Riseborough, “A Morte de Stalin”). Desenhista e fã de livros de fantasia, ela forma com o namorado um casal quieto e amoroso, cuja perdição se inicia ao cruzar olhos com Jeremiah Sand (Linus Roache, “Batman Begins”), um líder psicopata de um culto religioso que fica obcecado por ela, alheio ao risco de despertar a “fúria Cage” dentro de Red.

Ao longo da carreira, a persona de Nicolas Cage foi se tornando quase uma caricatura pela amálgama dos papéis que ele interpreta. Os fãs já esperam o momento em que o personagem caladão e carrancudo vai surtar como uma bomba-relógio. Especialmente nos anos que precedem a produção do longa, o ator ainda participou de um número altíssimo de obras, de maioria obscura, independente e de pouco sucesso crítico. Isso ajudou a consolidar sua imagem de príncipe cult e rei do filme B, brincando com a piada de que todo formando de cinema nos EUA ganha o direito de gravar um filme com Cage. Dito isso, o projeto idealizado por Panos Cosmatos é uma perfeita alegoria para o mito do “Nick revoltado”.

Com uma trama inspirada nos clássicos do cinema grindhouse dos anos 1970 como “O Massacre da Serra Elétrica”, “Aniversário Macabro” e “Quadrilha de Sádicos”, Panos constrói um visual onírico de cores saturadas, imagens granuladas, efeitos fantasma e flare de lentes em rima com a inclinação hippie do grupo de maníacos adoradores, que oferta drogas artesanais a horripilantes criaturas motoqueiras que parecem nascer do inferno estilo “Hellraiser”. Embebido pelo ego, o delirante Jeremiah acredita que pode entorpecer Mandy com suas químicas e eloquência a ponto de convencê-la a tomar seu lado. Para isso, o aspirante a Charles Manson invade a cabana de Red e realiza atos horrendos sob os olhos de ódio e desespero do lenhador, que não vê outra alternativa senão buscar vingança enquanto o sangue (es)corre quente.

Apesar de preparar o espectador para uma festa de violência, a obra não segue exatamente a montagem que se espera de um splatter ou slasher, gênero que tende a se formar quando Red sai à caça dos algozes. Cosmatos decide mergulhar completamente seu longa numa experiência alucinatória que se reflete não só nas imagens, mas também no ritmo do filme. A câmera quase estática em movimentos lentos procura estender o tempo por alguns momentos a mais simulando um tipo de contemplação letárgica associada ao consumo de drogas. Até mesmo as cenas de ação são recortadas de forma a não se desenrolarem exatamente como espera nosso cérebro acostumado com narrativas clássicas, lembrando a sensação de assistir à filmografia de David Lynch. De qualquer maneira, como prato principal, as oportunidades para a atuação explosiva de Nicolas Cage e o derramamento exagerado de sangue são mais que suficientes para agradar aos fãs de um ótimo e chocante midnight movie.

“Mandy” é um daqueles filmes que nasce com potencial cult ajudado pela projeção de Cage e com uma sólida identidade visual, que simula extraordinariamente os delírios e devaneios de um pesadelo tóxico. A trama de vingança é típica, porém tão eficaz nesse mundo sem ordem que faz você repensar aquela viagem para uma casa isolada ao mesmo tempo que embarca na demente jornada de retaliação de Red, armado como um herói das trevas e furioso literalmente como um tigre infernal liberto de sua jaula. Destaca-se por fim a espetacular trilha sonora do falecido Jóhann Jóhannsson (de “A Chegada”) que posiciona a obra de Panos Cosmatos na lista de títulos sombrios marcados pela música como “Sob a Pele” e “Corrente do Mal”.

William Sousa
@williamsousa

Compartilhe