Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 17 de agosto de 2018

Onde Está Você, João Gilberto? (2018): documentário em busca da ficção

Apesar das limitações de conteúdo e escolhas equivocadas para a narrativa, o tributo ao artista brasileiro vem em boa hora e pode motivar o espectador a uma revisita a sua obra musical.

Este não é um filme sobre João Gilberto. É um filme sobre um livro sobre João Gilberto. George Gachot, seu diretor, segue as fabulações descritas em “Ho-ba-la-lá: à procura de João Gilberto” por Marc Fischer, um alemão que nos anos de 2010 veio ao Rio à procura do ídolo, a quem desejava pedir que cantasse a baladinha de 1959 ao vivo. A empreitada, mesmo fracassada, originou um livro elogiado, que mistura entrevistas com importantes nomes da música brasileira ligadas ao cantor, como Miúcha e Roberto Meneschal, com uma narrativa do tipo Sherlock Holmes em terras tropicais.

A criatividade de Fischer em construir uma história cativante a partir de fatos mínimos, transformando sua busca insatisfeita numa sensível trama policialesca, que também presta tributo ao artista brasileiro e à Bossa Nova, torna-se não somente inspiração para o roteiro de Gachot, como bússola para cada passo de sua narrativa audiovisual. No início, inclusive, sua narração em alemão detém um formalismo que quase ameaça o filme de progredir por capítulos, como num livro, ideia que felizmente se dissipa sem sentirmos falta. Claramente apaixonado pelo Brasil, Gachot já havia dirigido aqui “O Samba” (2014), também documentário, sobre o sambista Martinho da Vila e a escola de samba Vila Isabel. Agora, seu encantamento por esse jovem alemão obcecado pela Bossa Nova, acentuado pela morte de Fischer, possivelmente por suicídio, pouco depois de retornar da viagem ao Brasil, é o que constrange esse filme a não conseguir ser outra coisa além de uma transposição literária. Nesse sentido, o excesso metódico de seu realizador na metainvestigação conduzida sobre a investigação do fã alemão não passa de um recaminho que faz de Gachot um mero tradutor de palavras em imagens, como se estas ficassem melhores que as primeiras. Ao ir aos mesmos lugares (o banheiro em Diamantina!) e falar com as mesmas pessoas que Fischer, faz com que seu filme não tenha nada de seu. Caminhando com o livro de Fischer como uma Bíblia debaixo do braço, munido do álbum de fotogramas e outros materiais fornecidos pela família de sua viagem ao Brasil, Gachot vai ao inevitável encontro do mesmo destino de Fischer, deixando João Gilberto escorregar por entre os dedos e perder-se pelas janelas dos apartamentos ou nas esquinas do Leblon.

O filme torna-se, dessa forma, mais sobre seu autor do que sobre a figura que o inspira e estampa seu pôster e seu título. A impressão que fica é de que Gachot fabula uma ficção toda própria, que se finge documentário, onde a figura de João Gilberto é a que menos importa. O compositor é o gatilho (ou o leitmotiv, tão importante nas tramas de Hitchcock), que conecta duas autonarrativas ou autoficções: a de Fischer e a de Gachot. Porém, não deixe de reparar, por causa disso, uma segunda camada que indica o impacto da Bossa Nova e a ressonância da obra de João pelo mundo: Fischer, o alemão fã de “Ho-ba-la-lá”, só conheceu o artista brasileiro porque um amigo japonês apresentou sua música para ele. O filme mesmo não deixa de ser um tributo internacional à música brasileira. Contudo, coprodução alemã, francesa e suíça, ele tem muito pouco de Brasil iá iá… Incluindo a relevância atual que vê em João Gilberto.

Mas seu maior desperdício está em não tentar construir uma narrativa que humanize a figura contraditória de seu protagonista, afastando essa maldita áurea deificada com que se tratam os artistas e, com isso, talvez conquistando algo de original ao filme. Talvez isso se dê por falta de material, limitado a entrevistas quase sem conteúdo com famosos ou desconhecidos que há cinco, dez, quinze ou quarenta anos (!) não falam ou veem o cantor, como o pianista João Donato, que quando menciona um entrevero passado que afastou os dois amigos, não é instigado pelo entrevistador a contar amiúde. Há ainda outros que nunca o viram pessoalmente, mas ainda assim são instigados a fornecer seus conteúdos sem substância, histórias desimportantes ou opiniões redundantes sobre o artista. Antes de uma demonstração de um olhar sutil de seu realizador, essas passagens surgem como uma busca angustiada por preencher o filme no formato de longa-metragem. É assim a passagem em que um gentil cozinheiro alonga uma história comezinha sobre o prato que vez ou outra João pede cheio de caprichos, pelo telefone, e que é entregue à domicilio sem contato direto com o entregador. Conversando na maioria das vezes em outra língua com os entrevistados, como em francês com a ex-esposa de João, Miúcha, o que facilita a vida do diretor, que em nenhum momento parece sentir falta de um tradutor, dificulta a possibilidade de identificação do espectador brasileiro com essa tal Bossa Nova, reforçando seu estereótipo de fetiche de gringo.

Há ainda um final suspeito, que transita entre o documentário e a documentira (o termo é do cineasta colombiano Luis Ospina), colocando o espectador mais atento na descrença frente a um possível truque da montagem no final, que dá o gancho para o filme encontrar seu fraco desfecho e os créditos, enfim, subirem. Existem outras passagens na corda bamba da veracidade, escapando-lhes uma dimensão de fábula construída, cenografia e atuação, como nos constrangedores contra planos que capturam desnecessárias reações do diretor aos seus interlocutores. Nada de novo no gênero, fazendo, inclusive, parte dos recursos a que um documentário pode recorrer para tentar construir mais substância dramática, mas uma daquelas técnicas que, quando bem realizada nos toma pelo braço e brinca com nossas impressões (como no sublime “Um Tigre de Papel”, do já citado Ospina), mas quando não funciona esfacela toda a proposta de sua forma híbrida num castelo de areia de desconfianças. Assim, em “Onde Está Você, João Gilberto?”, os que moram no Rio saberiam que seria muito improvável que uma casa de sucos, mesmo na zona sul, estivesse passando um dvd de João, cantor cuja sobrevida se mantém muito mais pelas músicas icônicas do passado, popularizadas em um sem número de regravações. O sumiço de sua figura pública, isto é, de sua imagem no imaginário popular, ao contrário de tantos outros artistas antigos que permanecem vivos e ativos na cultura brasileira, é assim ignorado por uma história que, em tese, visa empreender uma investigação em busca desse Wally tupiniquim.

Ainda assim, o fascínio de Gachot pela figura de João e pela Bossa Nova é cativante, ainda que escorado pela captura mágica a que Fischer tornou-se refém ao ouvir Ho-ba-la-lá pela primeira vez. Mesmo com tudo o que se perde aqui, é sempre bom colocar Chega de Saudade na vitrola e manobrar a agulha até que estoure pela caixa de som aquela voz rouca e contida de um dos artistas mais impactantes da nossa música, que hoje vive como um homem estranho atrás de portas.

Vinícius Volcof
@volcof

Compartilhe