Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 14 de junho de 2018

O Touro Ferdinando (2017): ser diferente é legal

Com alguns percalços que poderiam ter sido evitados, a nova animação do brasileiro Carlos Saldanha é rica em discurso e carisma, porém pobre de roteiro.

Vivemos em uma época onde ser diferente não é uma coisa necessariamente ruim. Embora muitas pessoas ainda vivam em suas caixas de areia, onde o mundo não evoluiu desde o século passado, é gratificante ver que no cinema nós estamos progredindo, com um número cada vez maior de obras representativas para os mais diversos públicos. E esse avanço também inclui as animações, ferramentas poderosíssimas na formação do caráter e da personalidade das futuras gerações. Graças a obras como “Zootopia”, “Moana” e agora “O Touro Ferdinando”, é cada vez mais comum ver o público desse gênero – formado majoritariamente por crianças -, quebrando preconceitos, vencendo a vergonha e percebendo que está tudo bem em ser quem realmente é.

Ao invés de treinar para as lutas nas touradas de Madrid, o simpático e extremamente carismático protagonista da nova obra do diretor brasileiro Carlos Saldanha (das franquias “A Era do Gelo” e “Rio”) é um pacifista que prefere cuidar de flores e de outros animaizinhos. Esse contraste é bem perceptível, tanto na personalidade, quanto na aparência do touro, uma figura gigantesca e imponente, dotada de características improváveis como amor e sensibilidade. Destaca-se o tratamento de questões delicadas de uma forma muito sutil e simples de se compreender, como é mostrado na bonita cena onde Ferdinando espera seu pai voltar de uma tourada, mas acaba recebendo apenas um caminhão vazio.

As sequências seguintes retratam bem os sentimentos que muitos conhecem e podem se identificar: da angústia advinda da solidão ao alívio proveniente do encontro de alguém que amamos – ou viremos a amar, no caso de Ferdinando. De quebra, ainda vemos cenas hilárias, como ele tentando não destruir tudo dentro de uma loja de cristais, além de planos abertos belíssimos, um apreço visual que não aparece tanto na textura de alguns personagens.

Apesar de todo o peso do discurso trazido pela animação, Saldanha não consegue se desvencilhar de características frequentes em toda a sua filmografia. Por trabalhar com um roteiro que não se destaca por sua complexidade, o diretor busca compensar a previsibilidade da história com voltas e mais voltas desnecessárias e repetitivas nas ações dos personagens. Ao tentar trazer surpresas para a trama, ele acaba apenas caindo numa armadilha que torna o filme maçante em certo momentos. Além disso, ele também peca na insistência de sempre inserir cenas que mais parecem curtas-metragens, em prol da diversão do que algo que mova a trama para frente, como na batalha de dança ou na piada recorrente com o pequeno coelho. Embora esta decisão sempre pareça acertada quando se trata de crianças, isso acaba prejudicando a obra numa esfera geral (isso também vale para você, Scrat!).

Embora já dito que a personalidade de Ferdinando é bastante magnética, ela acaba acarretando um problema comum em longas que focam demais em um único papel: todos os outros personagens acabam sendo relegados ao segundo plano, sem desenvolvimento ou profundidade adequados. Isso também é visto comumente em filmes biográficos, como no Churchill de Gary Oldman em “O Destino de Uma Nação”, que mostra bem o que acontece quando o crescimento dos demais personagens é preterido. Com o argumento transformando o elenco de apoio literalmente nisso – personas unidimensionais que existem apenas para sustentar a jornada do protagonista -, os roteiristas buscaram ao menos representar, em cada um, conceitos ou sentimentos fáceis de digerir, algo que ganha seu valor quando se leva em conta o público infantil.

À medida que a obra caminha para o fim, a trama consegue ser desenvolvida melhor, culminando em um final espetacular, dotado de um misto de pesar e realização pessoal emocionantes, poucas vezes trabalhadas de uma forma tão boa em animações. Porém, a sensação que fica é que precisamos aguentar muito até chegar ao clímax final, deixando novamente explícitos os problemas de ritmo do longa. Ao menos a trilha composta por John Powell (“Han Solo: Uma História Star Wars”) equilibra contratempo, com músicas agradáveis tanto no espectro mais emotivo quanto na ambientação espanhola, local onde toda a história se desenvolve.

Ao fim, “O Touro Ferdinando” é um filme com uma mensagem importante e necessária ao nosso tempo, pregando complacência e aceitação, um personagem extraordinário e cenas bastante divertidas. Uma mescla que tinha tudo para ser uma obra espetacular, não fossem os erros que poderiam facilmente ser evitados. Por maior que seja o sentimento de que poderia ter sido melhor, a crescente que a trama alcança, atrelada aos bons momentos do longa, devem fazer os espectadores – sobretudo os mais novos – saírem sorrindo ao fim da sessão.

Martinho Neto
@omeninomartinho

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