Paul Thomas Anderson traz à luz as excentricidades e pirraças do artista, ao mesmo tempo que explora as relações abusivas e o quanto as partes estão dispostas à ceder para preservá-las.
Duas frases, de dois notórios escritores do século 19, resumem bem a proposta e o protagonista de “Trama Fantasma”: “A arte é a forma mais intensa de individualismo que o mundo já conheceu”, disse um dia o dramaturgo Oscar Wilde (“O Retrato de Dorian Gray”) e, sem querer, em outra época, Victor Hugo (“Os Miseráveis”) completou: “Um grande artista é um grande homem numa grande criança”. Contando e condensando, à sua maneira, a história de milhares e excepcionais artistas que não conseguem/conseguiram externalizar suas angústias e as extravasam/extravasaram no próprio trabalho ou nas poucas pessoas que os cercam – ou os aturam -, Paul Thomas Anderson (“Vício Inerente”) atualiza a história de Peter Pan, trazendo à luz uma criança grande, brilhante e birrenta que não quer crescer.
Reynolds Woodcock (Daniel Day-Lewis, de “Lincoln”) é um renomado e meticuloso estilista, que não só dá vida aos mais belos vestidos da Inglaterra, como dá personalidade à eles, quase uma vida própria. Para utilizar as peças de suas disputadas coleções, não é preciso apenas pagar por eles e sim merecê-los. No comando de um verdadeiro exército da costura, e de sua própria vida pessoal, Woodcock conta com a precisa ajuda da irmã também excêntrica, Cyril (Lesley Manville, de “Malévola”), que sabe lidar perfeitamente com os arroubos de personalidade e individualismo do irmão. Em uma curta viagem de carro, o costureiro conhece a garçonete Alma (Vicky Krieps, de “O Jovem Karl Marx”), que torna-se sua musa e amante, porém sem submeter-se totalmente aos caprichos da dupla fraterna.
A trama não é demarcada, mostrando dualidades dos protagonistas a todo instante. Alma é uma personagem dúbia, apresentada como uma pessoa divertida que embarcou de cabeça em um mundo desconhecido. Ela nos representa e nos leva pela mão no caminho quase impossível do entendimento de toda a estranheza que rodeia aquela pessoas. Porém, rápida e suspeitosamente, mostra-se uma pessoa disposta a se entregar de corpo a alma para seu herói, sem abdicar de sua personalidade expansiva. Woodcock, por sua vez, é um homem preso ao seu passado, que sempre usou e descartou mulheres/musas como quem troca de roupa, e agora se vê confuso diante do novo desafio quase etéreo. A irmã, que é dura como pedra, transparece aqui e ali seu descontento com a situação em que vive. E assim, o que vemos em tela é uma insólita relação abusiva, de ambas as partes. As três.
Deixando para os últimos cinco minutos finais as verdadeiras intenções de seu filme, Thomas Anderson cria uma autêntica viagem sensorial, onde a câmera passeia pelos ambientes do gigante casarão que abriga o domicílio e o ateliê do artista, tornando o expectador quase um fantasma que perambula pelos ambientes, procurando algo ou alguém em que se grudar. O apuro técnico e sonoro é tão extremo, que é possível ouvir o som dos dedos do costureiro passando pela textura dos tecidos. A belíssima trilha de Jonny Greenwood (“O Mestre”), quase onipresente e sendo convidada e eleita, a todo momento, ao protagonismo da obra, faz par perfeito com os travelings e incessantes passeios de câmera, milimetricamente calculados para que, assim como os protagonistas, procurem o seu lugar naquilo tudo.
Em sua possível última contribuição dramatúrgica ao cinema, Daniel Day-Lewis não é menos do que sublime no trabalho que construiu para Woodcock. São os pequenos gestos que o fazem diferente de qualquer pessoa ou personagem que já se tenha visto por aí. Seja no olhar triste e atormentado pela falta de sua querida mãe, seja nos arroubos estrambólicos de criação ou na irritação com os barulhos distrativos pela manhã, é possível acreditar com veemência que aquele personagem é de carne e osso, por mais inusitado que seja. São dezenas de camadas que Lewis explora com uma tão aparente facilidade, que fica difícil imaginar qualquer outro ator nesse papel. Lesley Manville é o poderoso segundo vértice do triângulo e é quem traz para si, com extrema competência, a comicidade escondida no longa. A frieza e personalidade de sua “fulana de quê” são tão exacerbadas, que o riso vêm fácil, mesmo que não tenha sido criado artificialmente um ambiente para tal. Cabe a Vicky Krieps fechar o trio ao lado de dois monstros da atuação e até que ela se dá muito bem. Existe bastante credibilidade em seu trabalho, o que torna crível a virada da personagem no meio do segundo ato, fazendo com quê, mesmo não concordando com suas atitudes, seja possível se compadecer dessa garota do interior que chega com aura de estrela à sociedade moderna e que vai perdendo espaço progressivamente.
“Trama Fantasma” é um filme para ser visto na melhor sala de cinema possível. Com qualidade sonora e visual imbatíveis, Paul Thomas Anderson coloca mais uma obra de arte em sua “estante” de filmes magníficos. Há de se ter paciência com o andamento e a narrativa do longa, um pouco arrastada e repetitiva, que passa muito longe do convencional, mas se conseguir deixar-se passear e flutuar pelos corredores e personalidades dessa pequena e singular epopeia pelo reconhecimento pessoal, até o seu impactante e absortivo final, têm-se uma das melhores experiências de cinema da atualidade.