Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 31 de julho de 2017

XX (2017): A experiência feminina do terror

O que esta antologia consegue nos mostrar, e é extremamente eficiente nisso, é que há uma voz feminina que precisa se expressar através do terror.

O gênero de terror vem passando por uma necessária reformulação, principalmente na última década. Tanto na literatura quanto no cinema, uma nova forma de causar medo nas pessoas parece ter se tornado a motivação de novos autores. Primeiro, pois aquilo que era assustador no passado, para a atual geração pode não causar impacto. Mas também porque a experiência do terror se liga diretamente com quem a produz e com quem por ela é afetado.

É comum homens e mulheres terem percepções diferentes da vida. Logo, o terror é encarado de forma diferente também. E dessa percepção vem um dos elementos pelo qual o terror enquanto gênero vem sendo modificado. No cinema, a mudança ocorre gradualmente, conforme incríveis diretoras vem recebendo a devida oportunidade, como Jennifer Kent e seu incrível “Babadook”. Essa ideia apenas é reforçada com a antologia de curtas de terror “XX”.

No primeiro curta, “The Box” (“A Caixa“), dirigido por Jovanka Vuckovic, uma família vivencia o horror quando o filho mais novo passa a ter um comportamento estranho após observar o conteúdo de uma caixa. A situação parece piorar conforme o garoto compartilha o segredo com sua irmã e seu pai. Restando à mãe, Susan Jacobs (Natalie Brown de “Jogos Mortais 5“) o papel de observadora impotente que vê sua família morrendo lentamente sem compreender o real significado do que está acontecendo.

Todo o terror desta história se sustenta no mistério inicial que se propaga ao longo da história. A diretora toma o cuidado para não apressar os acontecimentos, e nos apresenta os personagens pouco a pouco. Assim, quando entendemos a verdadeira complexidade do que está acontecendo, parece ser tarde demais. É daí que surge o papel da diretora no filme. Ao enxergar a visão da mãe no meio de todo esse terror. Em determinada cena, ela se vê como uma possível solução do problema, pouco importando a consequência.

A segunda história, “The Birthday Cake” (“O Bolo de Aniversário“), de St. Vincent, nos apresenta a história de uma mãe que luta para esconder um terrível acontecimento e não estragar a festa de aniversário de sua filha. Assim como em “The Box”, o terror neste curta no crescente clima de tensão que atinge seu ápice no momento final. Mary (Melanie Lynskey de “As Vantagens de Ser Invisível”) se vê de frente com um terrível problema (envolvendo seu marido) e precisa impedir que isso atrapalhe a festa da sua filha.

Por mais que a ambientação fuja do terror tradicional, com uma paleta de cores mais suave e uma fotografia que mantém tudo bem iluminado, Vincent sabe criar uma atmosfera de tensão. O terror da história consiste no drama de uma mãe disposta a tudo pela filha. E é na forma como ela esconde o problema na cena final, que conecta ao início da história, que a diretora justifica o texto final.

Se nas duas primeira histórias, as diretoras eram estreantes, na terceira, “Don’t Fall” (“Não Caia“), temos Roxanne Benjamin (“Southbound”) que já havia assumido um longa anteriormente e nos oferece o mais clássico das quatro histórias. Um conto de terror, com influência dos filmes italianos da década de 1970 e 1980. A história acompanha um grupo de quatro jovens que decidem acampar numa área remota. O clima de diversão e liberdade repentinamente é quebrado por uma antiga maldição que irá fazê-los sentir a verdadeira face do medo.

Por mais que a história fuja da inovação proposta, não trata-se apenas de uma história sendo recontada. Benjamin consegue construir uma história bem amarrada com jovens que buscam uma liberdade a qualquer custo, que riem dos medos dos outros, mas ao perceber a real situação que estão passando, recorrem à fuga como a escolha mais óbvia. Apesar de bem dirigido, está é a mais fraca das histórias.

Por fim temos a mais experiente das diretoras para nos entregar a história final. Karyn Kusama (“Garota Infernal”) apresenta, em “Her Only Living Son” (“Seu Único Filho Vivo“), a história de uma mãe que passou a vida tentando esconder seu filho do passado, porém conforme o aniversário de 18 anos se aproxima, o garoto começa a apresentar um comportamento cada vez mais agressivo.

Essa história traz uma clara homenagem ao clássico “O Bebê de Rosemary“, num conto clássico e muito bem atualizado do terror que envolve uma força do mal além da nossa compreensão. Aqui é possível perceber as críticas da diretora ao patriarcado, à passividade da sociedade contra crimes que afetam mulheres, além dos sacrifícios feitos por uma mãe para poder proteger seu filho. É uma história muito densa que reforça uma das principais características do terror, ao ser usado como analogia para conflitos internos ou questões mais amplas.

Há ainda um stop-motion que é apresentado em partes entre cada uma das histórias, e que é concluído ao final da última. Dirigido por Sofia Carrillo, é um conto de terror gótico, mas que não se conecta diretamente com as histórias. Mesmo assim, merece uma atenção especial.

A proposta de trazer quatro diretoras, entre iniciante e experientes, permitiu uma construção de uma antologia que apresenta a visão feminina do que é o terror. Não trata-se de um clássico que será imortalizado por questões técnicas ou inovadoras, mas a postura de evidenciar que mulheres abordam o terror de forma diferente que os homens e permitir que quatro diretoras fizessem seu trabalho é um destaque. Cabe-nos também apreciar uma nova geração de diretores que buscam contar histórias de terror não obvias cujo foco está muito mais no roteiro bem trabalhado do que na montagem criada para proporcionar um susto, muitas vezes bobo.

Robinson Samulak Alves
@rsamulakalves

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