Embora a intensa performance de Leonardo DiCaprio e a estonteante direção de fotografia de Emmanuel Lubezki tornem este novo filme de Alejandro G. Iñárritu uma experiência única, o fato é que as ambições exacerbadas do diretor/roteirista acabam por roubar da obra de seu potencial pleno.
Logo no início de “Sangue Negro” (Paul Thomas Anderson, 2007), vemos o personagem de Daniel Day Lewis ter sua perna quebrada e se arrastar do fundo de um poço até uma cidade próxima. Minto, não vemos isso. Toda a jornada do protagonista daquele filme, do poço até a cidade, é mostrada em uma elipse. O vemos saindo e chegando, com o que ocorre no meio disso ficando a cargo de nossa imaginação, pois aquela jornada, por mais que valesse um filme per si, não era a história que estava a ser contada.
Neste “O Regresso”, o cineasta Alejandro G. Iñárritu conta uma viagem tão hercúlea quanto a que (não) foi mostrada naquele longa, emaranhada nas buscas pessoais de seus personagens por justiça e vingança. Baseado no livro de Michael Punke, o texto de Iñárritu e de Mark L. Smith (“Temos Vagas”) toma algumas liberdades em relação à já fantástica história de Hugh Glass, um explorador estadunidense do fim do século XVIII/início do século XIX que foi abandonado com ferimentos gravíssimos por seus companheiros a mais de 300km do assentamento mais próximo e mesmo assim conseguiu sobreviver.
Vivido aqui por Leonardo DiCaprio, Glass é mostrado como um homem introspectivo, com um passado violento e cujo amor pelo seu filho, o meio-pawnee Hawk (Forrest Goodluck), é sua grande âncora de humanidade. Servindo como guia em uma empreitada peleira liderada pelo decente Capitão Henry (Domhnall Gleeson), a aventura dá errado quando o grupo é atacado por nativo-americanos da tribo Arikara. Após o grupo ser obrigado a tomar um caminho alternativo para fugir dos Arikara, Glass tem um encontro fatídico com um urso.
Quase morto, ele é deixado junto de Hawk e de dois membros da expedição, o ganancioso Fitzgerald (Tom Hardy) e o inexperiente Bridger (Will Pouter), que deveriam lhe dar um enterro decente quando sucumbisse aos ferimentos. Fitzgerald resolve “acelerar o processo” e mata Hawk para não deixar testemunhas. No entanto, Glass sobrevive e parte em busca do assassino de seu filho.
O espírito de sobrevivência humano é uma das características mais fortes da nossa espécie e a luta de Glass para manter-se vivo a despeito das circunstâncias extremas já seria o bastante para segurar o espectador – especialmente com a intensa performance de Leonardo DiCaprio, que se entrega de corpo e alma ao papel. Ao diluir o tema central em meio a um miríade de subplots (a busca dos Arikaras pela filha sequestrada de seu líder, as dificuldades do restante do grupo de Glass em voltar para o forte, os interlúdios malickianos vividos pelo protagonista), o filme perde o foco.
Por mais que seja louvável que Iñárritu e Smith tenham tido o cuidado de dar arcos e motivos para as ações de todos os personagens – incluindo o antagonista – e fazer com que esses plots “conversassem” uns com os outros (por consequência fazendo uma reflexão interessante sobre o ciclo de selvageria entre invasores e nativos), o fato é que os roteiristas complicaram demais uma história cuja beleza estava na simplicidade, transformando um drama de sobrevivência em um western com consciência social, por assim dizer.
Isso não tira a beleza da composição de DiCaprio, que transmite força e humanidade através de um interpretação quase sem diálogos, atuando de maneira expressiva através de sua linguagem corporal. O público sente cada dificuldade, ferimento e conquista do personagem, embarcando na tensa jornada ao lado do ator/personagem.
A pequenez de Glass perante o ambiente, retratado de forma majestosa e assustadora pelo diretor de fotografia Emmanuel Lubezki (franco favorito a qualquer premiação a que concorra por este trabalho), torna cada passo dado pelo personagem ainda mais heróico. A preferência de Iñárritu por planos longos (quase inexistem planos curtos aqui) ajudam o espectador a mergulhar na experiência, que deve, de preferência, ser vivida em uma tela IMAX.
Ademais, não elogiar a estarrecedora cena da batalha entre os exploradores e os Arikaras que ocorre logo no início da projeção seria um crime, com o diretor criando um aterrador caos controlado que só pode ser descrito como uma versão faroeste da invasão da Normandia de “O Resgate do Soldado Ryan”. Outro destaque óbvio é para o famigerado ataque do urso, onde a câmera atua de maneira quase sádica ao não abandonar o feroz e visceral embate entre Hugh e o animal – com a rima visual entre esse combate e o que conclui a trama sendo a prova do preciosismo técnico de Iñárritu.
O que falta ao diretor é alguém que o “segure” – necessidade que ele, Peter Jackson e Quentin Tarantino compartilham em seus trabalhos mais recentes -, tornando a experiência cinematográfica mais longa e tortuosa do que o ideal.
Por mais visualmente estonteantes que as reflexões de Hugh sobre a vida sejam, elas não avançam a trama e nem adicionam nada ao arco do personagem. A despeito da cena do penhasco ser de tirar o fôlego, em retrospecto, seu absurdo prejudica a narrativa como um todo ao minar sua credibilidade. E embora Tom Hardy faça milagres ao transformar o seu Fitzgerald em uma figura mais complexa do que um egoísta interessado apenas em salvar a própria pele (percebam como minuciosamente o ator insere alguns toques que mostram os traumas pretéritos de Fitzgerald), a relação antagônica entre o seu personagem e o de DiCaprio se mostra extremamente artificial desde o início.
Mesmo prejudicado pelas ambições de Iñárritu,”O Regresso” continua a impressionar e sobreviver. Meio como o próprio Hugh Glass.