Mais de quatro décadas após o seu lançamento, esta adaptação cinematográfica de Stanley Kubrick para o livro de Anthony Burgess permanece forte, relevante e irretocável.
Há uma fábula antiga sobre um escorpião e um sapo. O escorpião queria atravessar um lago e pede para que o sapo o carregue pelo percurso, convencendo-o que não o picaria durante a travessia, pois morreria também. Quando o escorpião pica o sapo no meio do lago e os dois começam a afundar para morte, descobrimos que o escorpião não podia fugir à sua natureza.
Por mais culto, articulado, inteligente e charmoso que Alexander DeLarge seja, ele é um monstro. Lembrem-se, o que está sendo comentado aqui é a versão cinematográfica de “Laranja Mecânica”, a visão do cineasta Stanley Kubrick para o livro homônimo de Anthony Burgess, não o original literário. No filme, o protagonista vivido por Malcolm McDowell é um ser diabólico. Mas será que arrancar suas presas e deixá-lo “indefeso” não seria algo tão maligno quanto as ações do próprio Alex?
O “futuro” mostrado na narrativa coloca o protagonista em um ambiente bem parecido com a Inglaterra dos anos 1970, o que torna a revolta daquele jovem do proletariado facilmente identificável com o turbulento período que a Grã-Bretanha vivia naquele período. “Um mundo fedorento onde não existe mais lei e ordem”, como dizia o velho irlandês surrado sem motivo por Alex e sua gangue, ou “drugues”.
Na trama, o delinquente juvenil Alex é preso, após ser traído por seus companheiros. Ele então se torna voluntário para o Tratamento Ludovico, uma radical terapia de aversão que lhe removeria os instintos violentos. Mas este mesmo tratamento o deixa completamente indefeso para os horrores do seu mundo. Deste modo, nos perguntamos: precisamos da violência (ou ao menos da possibilidade de violência) para sobreviver neste mundo louco?
Ora, um dos atos abomináveis do protagonista é violentar de maneira quase cômica um casal inocente em sua própria casa. O terror desta cena é ressaltado por uma placa de “home” (lar) que adorna a entrada da luxuosa propriedade. Ao atacar e roubar pessoas de bem em seus próprios lares, o local onde elas se sentem mais seguras, Alex (e Kubrick) brincam com medos primordiais da audiência. Ao mesmo tempo, é impossível não comparar a opulência dos ambientes do escritor e da mulher dos gatos com a decadência da vizinhança do rapaz.
A distópica Londres, bem como a tolice e/ou crueldade daqueles que exercem autoridade sobre Alex, sejam pais, policiais ou políticos, tornam a existência de um indivíduo tão degenerado uma consequência lógica. As condições perfeitas para sua existência se apresentaram, portanto ele nasceu naquele mundo, algo natural como um escorpião no mato. Mas o fato de serem naturais não os tornam menos venenosos.
A violência praticada pelo “anti-herói” na primeira metade do longa é mostrada de maneira quase surreal. A briga de gangues tem um tom que beira o circense, o estupro ao som de “Cantando na Chuva” transcorre como um musical macabro e o ataque com o falo à mulher dos gatos é habilmente montado para evitar mostrar a vítima durante seu martírio, em uma sobreposição de arte, selvageria e diversão sardônica, algo que ecoa durante toda a projeção.
Por falar neste cena, a escolha de “instrumento” por parte de Alex revela algo também perturbador: a ligação entre sua “ultraviolência” e sexualidade. Afinal, após o Tratamento Ludovico, Alex também perde sua libido, o que transforma a ação estatal em uma espécie de castração psicológica.
Os atos de violência dos quais o próprio Alex se torna vítima posteriormente são mostrados de modo bem menos estilizado, com Kubrick não se refreando neste ponto. Minto, não é Kubrick que faz isso, mas o próprio Alex, o humilde narrador de sua própria história que, ávido para ser acolhido nos braços dos seus ouvintes, os mais fiéis de seus drugues e cúmplices, e também os mais facilmente dobráveis, acentua as consequências das ações que o tem como vítima e mitiga (até certo ponto) os seus próprios pecados. A fidelidade do público ao personagem é tamanha que, ainda hoje, pessoas se fantasiam como ele e falam em nadsat (gírias usadas pelos drugues que misturam corruptelas de vários idiomas), provando quão enraizado em nosso imaginário ele está.
Isso se deve à magnética atuação de Malcolm McDowell que, com seu jeito de menino travesso e voz hipnótica, encarna o personagem principal com absoluta perfeição, sendo impossível imaginar qualquer outro neste papel tão icônico, com o ator conquistando a atenção indivisível da audiência logo no primeiro frame. Sua natureza animalesca é revelada em alguns breves momentos em câmera lenta, para logo depois dar lugar a sorrisos assustadores e uma coerência igualmente horripilante, com a narrativa caminhando em uma cadência rítmica quase que musical, acompanhando as batidas eletrônicas que modificam as notas criadas pelo velho e bom Ludwig Van.
Sempre a pessoa mais esperta da sala, consequência ou causa do seu desdém a todos os que o cercam, Alex é um espelho de nossos impulsos mais sombrios, temperado com doses iguais de sofisticação cultural e hipocrisia, descrição que também se aplica ao filme em si. Os altos níveis de violência física, sexual e psicológica do longa não são apenas justificáveis, mas necessários para a própria tessitura da história a ser contada.
Isso porque, em maior ou menor grau, compartilharmos das sanhas destrutivas que correm desenfreadas nas veias de Alex, como a própria tentação em aplicar o tratamento Ludovico revela. Mesmo assim, ele nos vê como meros sapos e é justamente isso que torna “Laranja Mecânica” atemporal e irresistível.