Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 09 de junho de 2013

Kátia (2013): doc acerta ao valorizar pessoa em vez da causa

Filme é corajoso ao contar a rotina da primeira travesti eleita para um cargo político na história do Brasil.

KátiaLevantar bandeiras explicitamente dificilmente é a melhor maneira de se realizar um documentário. Soa frágil, piegas, clichê. Além disso, impossibilita a produção de reverberar para além do público que já defende a causa, principalmente quando estamos falando de temáticas LGBT. Fugir disso é fazer o filme virar registro histórico, marcar época, ser objeto de discussões. “Kátia”, primeiro longa da piauiense Karla Holanda, segue a sugestão quase à risca e entrega um trabalho sutil, valorizando a rotina de sua protagonista em detrimento da causa que defende, mesmo que ela seja válida.

O doc mostra um pouco da vida de Kátia Tapety, nascida José, a primeira travesti eleita para um cargo político na história do País. Três vezes vereadora e uma vez vice-prefeita da pequena cidade de Colônia do Piauí, localizada a um pouco mais de 350 quilômetros da capital Teresina, ela exibe sua simplicidade e simpatia que a fizeram alcançar tais cargos. Hiperativa, não para um segundo sequer, seja para falar com amigos ou apenas conhecidos, seja para fazer compras ou buscar registrar sua filha adotada como legítima em Oeiras, o município vizinho. Ainda há tempo para alimentar os diversos animais de que cuida em plena seca nordestina.

Debaixo de um sol escaldante é que Kátia é mostrada pela primeira vez, já demonstrando que sua vida não é nada glamourosa. Carregando um jumento em uma estrada esburacada que provavelmente liga municípios do Estado, ela, porém, não reclama. Na verdade, Kátia parece extremamente satisfeita com a rotina que leva, mesmo que para os citadinos ela transpareça ser desgastante. E é exibindo esse dia-a-dia atribulado de sua personagem principal que o filme universaliza sua condição. Estamos diante de uma habitante de Colônia que por acaso vem a ser travesti.

O que vemos em 70 minutos de projeção, na verdade, são os hábitos de uma senhora (cuja idade não gosta de revelar) bastante carismática e educada, que, mesmo exercendo funções tidas como masculinas, não dispensa vaidades, ainda que limitadamente. É ela quem molda a trama do documentário com suas andanças, suas visitas, seus encontros. O roteiro de Karla Holanda permite-a tal liberdade, aproximando o público da personagem principal, acentuando seu carisma, valorizando seu caráter, demonstrando porque ela é tão querida pelo povo de sua cidade.

Sua interação com a câmera contribui para a identificação com Kátia. Além de proporcionar momentos de descontração por conta da personalidade dela, a elogiável montagem de Marco Rudolf e da própria Karla Holanda não hesita em incluir os “bastidores” das filmagens, como quando ela pede para registrá-la descendo as escadas, ou por fazer a tomada alongar-se um pouco além do combinado, captando reações inusitadas e até surpreendentes.

A direção de Holanda também merece destaque. Os necessários depoimentos acontecem, mas eles são tão reduzidos e donos de uma naturalidade ímpar que jamais incomodam. Por sinal, sua câmera e equipe técnica, em momentos, parecem invisíveis, tornando possível entender um pouco do universo rural que sua personagem principal habita. Até os planos claramente montados e ensaiados compensam por sua beleza estética ou narrativa. O cantar de Kátia na beira de um açude é uma dessas bonitas cenas que marcam por sua sutileza e simplicidade.

O documentário, porém, vacila em seu ato final ao esquecer a pessoa e valorizar a causa. Deixando o Piauí e indo para o Rio de Janeiro, durante um seminário LGBT, a história torna demasiadamente explícita sua luta, enfraquecendo sua mensagem. Felizmente, é por poucos minutos, nada que prejudique a bela essência de “Kátia”, nada que minimize os seus feitos e a bonita vida que leva essa mulher batalhadora que superou até o preconceito do próprio pai. Vale muito a pena conhecê-la!

Darlano Didimo
@rapadura

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