Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 18 de fevereiro de 2012

Cantando na Chuva: comédia musical diverte na temática e nas danças

Longa de 1952 é considerado um dos melhores filmes de todos os tempos,

Ao longo da história do cinema, podemos observar várias obras que falam sobre a mesma arte a que cabem. Por meio da metalinguagem, tornam evidentes aspectos do próprio processo de criação de filmes. Talvez a mais reconhecida entre elas seja “Cantando na Chuva”, comédia musical que retrata o período de transição entre o cinema mudo e o falado. Na trama, Don Lockwood (Gene Kelly) é um grande astro do cinema, mas, com o advento do som, ele e seus colegas de profissão temem pelo futuro de suas carreiras. Com a ajuda do seu amigo músico Cosmo Brown (Donald O’Connor) e da atriz em ascensão Kathy Selden (Debbie Reynolds), por quem tem uma queda, Don tem que elaborar maneiras de se adaptar às dificuldades técnicas e artísticas desta nova linguagem.

O roteiro de Adolph Green e Betty Comden é bem característico de comédias dessa época, dando maior prioridade à funcionalidade de cada cena do que à naturalidade da história. Com isso, personagens aparecem sem motivo – como Cosmo na aula de dicção de Don –, os diálogos se resolvem rapidamente (independente da artificialidade que geram) e os personagens se adequam ao que é mais conveniente para o momento, como na sequência que o sério produtor R. F. Simpson (Millard Mitchell) faz patetices ao subir as cortinas de um palco. Além disso, as cenas de dança pouco ou nada adicionam à trama, servindo mais como entretenimento, uma pausa na história, do que exercendo alguma função narrativa. Entretanto, ao contrário do que se possa alegar, nada disso se constitui como um defeito. Tais opções são bastante necessárias para a atmosfera que o filme se propõe a criar, envolvendo cada vez mais o espectador em vez de incomodá-lo.

As atuações também seguem esse caminho. Certos exageros de interpretação, ao mesmo tempo em que satirizam o próprio conteúdo do filme (o contraste entre cinema mudo e falado), servem para sustentar o teor cômico durante todo o longa. Os diálogos são sempre ritmados e até as pausas entre uma fala e outra parecem ter um tempo certo. Todos já têm uma resposta para tudo, principalmente quando se trata de uma piada. O trio protagonista, apresentado logo no início cantando e dançando a música tema do filme, não poderia ter uma química melhor. Kelly, Reynolds e O’Connor divertem tanto nas falas como nas danças, compensando a falta de profundidade psicológica de seus personagens com uma qualidade interativa que oferece ao público um lugar naquela relação de amizade.

Don Lockwood segue o estereótipo do galã, que tem todas as mulheres a seus pés, mas sente dificuldades em conquistar quem realmente ama. A atuação de Gene Kelly dá ao personagem um carisma extremo, fugindo da esperada arrogância dos famosos. Ele não se esquece de onde veio e do esforço que teve para alcançar o estrelato, reconhecendo a devida importância de seu amigo Cosmo Brown. Donald O’Connor cumpre exageradamente bem o papel de fiel e inseparável escudeiro que, em vez de sentir inveja pela ascensão do outro (já que ambos começaram a carreira de artista juntos), ajuda e diverte os personagens e o espectador, rindo da própria condição de sidekick (um dos mais valorizados do cinema). Já Debbie Reynolds contribui muito fisicamente com sua personagem, construindo uma interessante ambiguidade com a personalidade de Kathy Selden. Sua expressão facial e linguagem corporal lembram muito uma boneca, remetendo a uma inocência que é posta em questão logo na primeira cena em que aparece, dirigindo o carro e surpreendendo o protagonista com suas ideias pouco comuns sobre a arte cinematográfica.

O grande destaque no desempenho dos atores é nas sequências musicais. As coreografias de dança criadas por Gene Kelly e Stanley Donen – dois experientes em musicais que também dirigem o longa – são complexas e exigem bastante timing dos atores, pois se aproveitam constantemente de objetos de cena para compor os números. Estes se tornam ainda mais divertidos quando mesclam outros tipos de movimento aos passos de dança, como na surtada performance de Cosmo no estúdio de cinema.

A trilha sonora é impecável, contemplando desde canções mais tradicionais, como a romântica “You Were Meant For Me”, até mais ousadas, como a palhaça “Moses”. A câmera não se limita a registrar a dança, sendo uma participante ativa dela com movimentos que evidenciam a música e a coreografia. Igualmente competente é a montagem de Adrienne Fazan, cuja precisão dos cortes possibilita uma fluidez de movimento e de som que dá continuidade a toda sequência sem prejuízo do ritmo musical.

A fotografia de Harold Rosson é pouco trabalhada, servindo mais para clarear o set do que para iluminá-lo realisticamente ou para buscar algum significado por meio da imagem. Entretanto, tal postura acaba sendo coerente com a proposta do filme, uma vez que se trata de uma comédia musical na qual o brilho e as cores têm papel fundamental na atmosfera positiva que se deseja construir. Desse modo, esse tipo de fotografia com poucas sombras acaba destacando mais os cenários e os figurinos. Estes, por sua vez, almejam um espetáculo visual e não poupam extravagâncias, principalmente na cena musical que Don descreve ao produtor.

Não por acaso, “Cantando na Chuva” é considerado por muitos o melhor musical e um dos melhores filmes de todos os tempos. O roteiro simples e interessante, as coreografias complexas e divertidas, as atuações carismáticas e o visual resplandecente garantem um ótimo entretenimento e uma admiração ainda maior pelos recursos e pelo poder de encantamento da sétima arte.

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Thiago César é formado em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), mas aspirante a cineasta. Já fez cursos na área de audiovisual e realiza filmes independentes.

Cinema com Rapadura Team
@rapadura

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