Esta adaptação da série de graphic novels escritas e desenhadas por Bryan Lee O'Malley se revela uma fábula nerd sobre crescimento pessoal e relacionamentos, ao mesmo tempo que faz uma ode à cultura pop. Com Kung-fu!
É difícil encontrar um filme que consiga falar o indecifrável dialeto do público jovem sem soar tosco e forçado. De certo modo, o tom de fábula adotado por este “Scott Pilgrim Contra o Mundo” contorna este problema, fazendo com que as irreais situações apresentadas na fita dialoguem com a audiência através dos sentimentos que se encontram no cerne das cenas.
Dirigida e co-roteirizada com vigor e fôlego pelo talentoso Edgar Wright, esta adaptação da obra de Bryan Lee O’Malley brinca com as mídias audiovisuais com as quais os jovens e adultos iniciantes estão mais do que acostumados para contar uma história simples, mas com um subtexto mais complexo do que parece.
Scott Pilgrim (Michael Cera) é um rapaz canadense de 22 anos que, após sofrer uma decepção amorosa, inicia um relacionamento simples e inofensivo com a estudante do colegial Knives Chau (Ellen Wong), que está apaixonada pelo rapaz e pela banda de garagem da qual ele pertence, a Sex Bob-Omb. A banda, aliás, está em polvorosa, participando de um concurso para conseguir um contrato com um influente produtor musical.
Passando seus dias ao lado da sarcástica baterista Kim (Allison Pill), do talentoso e obstinado Stephen (Mark Webber), do apagado Pequeno Neil (Johnny Simmons) e de seu companheiro de quarto gay e extrovertido Wallace (Kieran Culkin), Scott está confortável – e estagnado – em sua preciosa vidinha, até que surge a misteriosa figura de Ramona Flowers (Mary Elizabeth Winstead), entregadora da Amazon e garota dos sonhos de Scott, por quem o rapaz se apaixona à primeira vista (ou quase isto).
O problema é que Ramona é perseguida pela Liga de seus Ex-Namorados Malignos, liderada pelo egocêntrico Gideon (Jason Schwartzman). Para salvar a moça e conseguir namorá-la, Scott tem de passar pelos peculiares sete membros daquele grupo, que inclui um indiano místico, um astro do cinema skatista, uma dupla de musicistas eletrônicos gêmeos, o atual namorado de sua ex e até uma garota ninja.
Nas mãos de profissionais menos talentosos, a história poderia se resumir a um estereotipado nerd tentando lidar com os ex-namorados valentões de seu objeto do desejo. No entanto, Edgar Wright e o co-roteirista Michael Bacall conseguem dar profundidade aos personagens, se utilizando do material original de Bryan Lee O’Malley.
Scott não é exatamente um paradigma da virtude, algo que fica explicitado por sua inércia e pelo modo com que lida com seu relacionamento com Knives. Apesar de ser o “herói” da narrativa, Scott possui defeitos e falhas, que tem de superar no decorrer da narrativa, algo que Michael Cera consegue passar muito bem para o público. O crescimento do personagem é o ponto principal da narrativa e Cera compreende isso, mostrando a evolução gradual do jovem Pilgrim, de pós-adolescente imaturo para algo mais.
Engraçado reparar que, durante boa parte da fita, Ramona passa a impressão de ser distante, até fria. Mary Elizabeth Winstead a interpreta com tal distanciamento juntamente por conta do passado da garota, cuja vida amorosa tem sido um desastre justamente por conta de suas ações. Tal culpa e as necessidades de se conectar com outra pessoa e a de se salvar da “influência” de Gideon a levam para Scott, que acaba arrastado para esta confusão toda.
Knives acaba sendo a personagem mais simpática do triângulo amoroso. O jeito inocente e meigo que Ellen Wong interpreta a garota faz com que o público se conecte com ela quase que instantaneamente. Knives atua um pouco como os olhos da audiência nas primeiras cenas do filme, haja vista que descobrimos a Sex Bob-Omb junto dela, o que aumenta nossa simpatia pela colegial.
O elenco coadjuvante está simplesmente soberbo, sem exceções, algo raro em filmes não tão longos e com múltiplos personagens. Destaque para Kieran Culkin e Allison Pill. O primeiro, vivendo o companheiro de quarto gay de Scott, Wallace, simplesmente rouba todas as cenas nas quais aparece, com seu jeito maior que a vida. Pill, por sua vez, diverte o público com suas tiradas em cima de Scott, deixando bem claro o passado de Kim ao lado do personagem-título.
Os ex-namorados malignos de Ramona são tratados mais como estereótipos do que como personagens per si, o que faz sentido no filme, pois eles são como chefões de fases em games antigos, não precisando ter profundidade, apenas serem ameaçadores para o “herói”. No entanto, Jason Schwartzman se diferencia dos demais por realmente fazer de Gideon um vilão deveras detestável. Arrogante, prepotente e sexista, Gideon é o típico antagonista que a audiência adora odiar.
Um tema recorrente na fita é justamente a dificuldade dos seus personagens em diferenciar obsessão e amor, com essa separação sendo feita justamente pelo respeito próprio. Knives está obcecada por Scott, que está obcecado por Ramona, que não tem controle de si mesma quando está perto de Gideon. Para conseguirem descobrir o que é amor verdadeiro, os três (que são a força dramática do filme), precisam não apenas compreender suas obsessões, mas superá-las.
“Scott Pilgrim Contra o Mundo” mostra tal evolução como fases em um game, mas não sendo esta mídia a única a ser referenciada. Enquanto nos quadrinhos originais a referência a bandas, games, HQs, mangás e animes eram feitas dentro do contexto da nona arte, Edgar Wright aproveita a linguagem audiovisual para ampliar o escopo das homenagens à cultura pop.
A fita cita, de vários modos, ícones dos anos 80/90. Brincadeiras envolvendo a série de TV “Seinfeld” e os games da SEGA e da Nintendo são alguns dos bônus presentes de algum modo em meio à narrativa, com o diretor conseguindo inseri-los de maneira extremamente orgânica dentro da película. As próprias linhas de movimento, onomatopéias e caixas de informação vistas nas cenas são típicas de quadrinhos e animações, algo encontrado principalmente em produções japonesas.
Interessante reparar que nenhuma das cenas de ação do filme é idêntica a outra, sempre se resolvendo de maneiras pouco usuais, tendo identidades visuais (e até sonoras) distintas, envolvendo até mesmo um número de dança bollywoodiano. Neste sentido, a luta contra os gêmeos é a mais interessante, se realizando em um duelo entre duas bandas, representados por criaturas que representam os sons de suas respectivas músicas. O duelo de espadas entre Gideon e Scott (que se transforma posteriormente em uma batalha com múltiplos “jogadores”) também é muito divertido. Tais cenas contam com ótimos efeitos especiais, mas nenhum destes destoam aparece deslocado do look da produção.
O visual único do longa, com seus pixels e cores voando pela tela, só existe por conta do talento de Wright e do diretor de fotografia Bill Pope. O cineasta prima por ângulos de filmagem esteticamente interessantes, se utilizando de diversos formatos de tela durante a projeção para retratar elementos narrativos, como o escopo das batalhas ou a solidão dos personagens. Por sua vez, Pope se utiliza da versatilidade visual do diretor para brincar com os extremos que envolvem o colorido do mundo do longa, vide a cena do rompimento entre Scott e Knives.
A montagem, dinâmica e acelerada, também merece ser louvada, com o uso de raccords merecendo uma atenção especial. Provavelmente o trabalho dos montadores Jonathan Amos e Paul Machliss renderá à dupla diversas indicações a prêmios de sua categoria. A parte sonora também está muito bem cuidada. Além de sua ótima sonoplastia e edição de som, a película conta com uma trilha sonora maravilhosa, responsabilidade não só do compositor Nigel Godrich (produtor de bandas como Radiohead), mas também das ótimas canções que embalam a história, escolhidas a dedo por Wright e pelo próprio Bryan Lee O’Malley.
Contando uma história de amadurecimento com bastante vigor (e kung-fu), “Scott Pilgrim Contra o Mundo” é uma realização cinematográfica repleta de inteligência e originalidade que merece mais do que ser cult, merece ser conhecida. Recomendado.