Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Destinos Ligados

A incapacidade humana diante do que não pode ser modificado é o argumento principal de um filme que resgata e põe em cena nossa fragilidade.

Três mulheres. Incapazes, incompletas e absolutamente desarmadas. Três vidas ligadas por outra existência que remete aos tempos da concepção. Reflexões sobre a incompetência humana de reverter situações que foram condicionadas em sua base e resolvidas no outro extremo da existência, tardiamente. “Destinos Ligados” imerge o público naquela ferida que, em busca de uma (sobre)vivência mais confortável, é deixada de lado, escondida, propositalmente esquecida pelos anos.

Em tempos de criações mecânicas e elétricas que desafiam as leis naturais e colocam em dúvida as limitações originais e históricas do homem, temos um filme sobre incapacidades. E a principal delas é a humana. Por isso, talvez, seja desconfortável ver projetada, em uma tela gigante de cinema, para ser assistida e comentada, aquela verdade que você  carregava meio de lado, meio segredo: aquela solução jamais encontrada. Ou, ainda pior, inexistente.

A história e, principalmente, a coragem para contá-la, estão no sangue do diretor. Filho do escritor colombiano Gabriel García Marquez, Nobel de Literatura em 1982, Rodrigo García conviveu com as narrativas que cunharam o termo “realismo fantástico” para as obras do pai.  Seja narrando a inaptidão de um senhor idoso para a consumação do seu amor ou a incapacidade de um náufrago no mar do Caribe, Gabo foi mestre em retratar nossas limitações.

Seguindo o modelo paterno, Rodrigo García já havia analisado um histórico de fracassos pessoais em seu “Coisas que Você Pode Dizer Apenas de Olhar para Ela”. Com técnicas semelhantes de narração e temática análoga, o diretor construiu “Destinos Ligados” sob as mesmas características que fizeram de seu produto anterior um bom filme. Agora, talvez para completar sua primeira obra, talvez para encerrar seu ciclo de sadismo, García insere o público em situações mais carnais.

A personagem de Naomi Watts partiu de uma infância traumática para uma carreira jurídica bem sucedida. Nesse percurso, alheia aos olhares vigilantes das regras de convivência, tornou-se uma mulher solitária e ambiciosa, e decidiu conseguir para si o que lhe foi negado desde o seu nascimento. E é perdida nessa busca sem fim que a personagem desce mais fundo em sua solidão.

Em outro ponto da cidade, Annette Bening vive uma enfermeira de meia idade amargurada por lembranças que não ousa verbalizar, embora seus atos traiam suas ambições e revelem um passado não resolvido. Na tentativa de suportar sua inércia, a personagem cria para si um modelo de conduta que exige certezas antes de demonstrar o que ainda lhe resta de humano.

É inevitável não comparar as duas personagens ao papel vivido por Isabelle Huppert em “A Professora de Piano”. Para Watts, García escolheu o estranhamento e lascividade sexuais, enquanto Bening ficou com o lado prosaico da personagem de Michael Haneke, com modos circunspectos e arrogância justificável. Assim como o papel de Huppert, Bening também vive com a mãe idosa em uma casa solitária.

O elenco de protagonistas ainda abre espaço para Kerry Washington, que enfrenta sérios problemas para dar um filho ao marido. Entre salas de centros de adoção e se sujeitando aos caprichos de uma adolescente grávida, a personagem de Washington condiciona sua felicidade ao alcance de sua meta, cujas ferramentas para atingi-la naturalmente lhe foram injustamente retiradas.

Se essas mulheres são naturalmente complexas, o trabalho do time de protagonistas resgata o que há de mais intrínseco em seus papeis. Confiantes como sempre, Watts e Bening oferecem uma segurança inarrável ao andamento de trama. A primeira delas, habituada aos papéis frágeis que condizem com seu tipo físico, demonstra uma versatilidade impressionante ao assumir um papel que impõe respeito e dominação. Para Bening, não há o que se acrescentar, seu histórico é suficiente. Kerry Washington acompanha os modos pueris de seu papel, mas não deixa a qualidade de seu trabalho cair quando precisa atingir picos dramáticos. Samuel L. Jackson e Cherry Jones completam o rol de atores que merecem destaque.

Se o apuro dramático dos atores e o trabalho impressionante do roteirista podem ser alçados ao título de obra-prima, o conservadorismo técnico de “Destinos Ligados” coloca o filme em um plano mais terreno. As opções de câmera, a linguagem fotográfica e a escolha da música soam de modo arcaico, embora não falhem em momento algum.

Felizmente, este é um filme para ser sentido. Nele, qualquer traço de tradicionalismo técnico parece pouco importante. Caso seja simplesmente assistido, “Destinos Ligados” surpreende pela potência de sua história e segurança de suas atrizes. Para aqueles que decidem assumir sua proposta, tudo o que foi escrito em parágrafos anteriores parece insignificante, incompleto, incapaz. Como eu. Como você.

Jader Santana
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